Você Não Estava Aqui

KEN LOACH E SEU CINEMA DE RESISTÊNCIA


Você Não Estava Aqui (Sorry, We Missed You / 2019) segue na frequência de Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake / 2016), na caracterização do flagelo da economia neoliberal sobre a vida dos trabalhadores e suas famílias no mundo atual. O inglês Ken Loach, na sua parceria habitual com o roteirista Paul Laverty, filma o abismo social, filma a política contando histórias e dramas humanos, enche a tela, nossos olhos e corações com um realismo social dilacerante. Não há floreios nem muitas curvas no seu cinema, sua força está no modo direto de narrar suas histórias, com acidez e sentimento.
Em Eu, Daniel Blake (Palma de Ouro de Cannes / 2016), um homem velho enfrenta o Estado opressor, incapaz de cuidar de seus cidadãos, jogados na marginalidade do desemprego, do subemprego e do desamparo, na falta de garantias para seguir na vida, subjugados pela burocracia estatal. Filme que trata de questões cruciais, contemporâneas, como o individualismo versus o espírito de coletividade, o egoísmo contra a generosidade. Mais um filme de Loach no seu permanente cinema de resistência, cujo tema recorrente é ainda a aposta e a crença na humanidade.
Outros filmes anteriores do diretor britânico apontaram com agudez temas sociais e políticos, abordando a opressão do Estado e do capitalismo, com histórias de luta, críticas a sistemas de poder e na defesa de humilhados e ofendidos.
Terra e Liberdade (1995), Uma Canção para Carla (1996), Meu Nome é Joe (1998), Pão e Rosas (2000), Ventos da Liberdade (Palma de Ouro de Cannes / 2006), À Procura de Eric (2009), Rota Irlandesa (2010), A Parte dos Anjos (2012), Jimmy's Hall (2014), são apenas alguns dos títulos de Loach, com um cinema nomeado como "naturalista", engajado e alinhado à esquerda, a dar voz a trabalhadores, imigrantes, injustiçados e desvalidos em geral, em uma sociedade de classes, denunciando conflitos, renovando um cinema que defende abertamente direitos sociais, civis, humanos.
Aos 83 anos, Loach traz agora Você Não Estava Aqui, denunciando a precarização das relações de trabalho e a uberização da economia. A atualidade e a urgência do tema, em seus aspectos morais, éticos e políticos, estão presentes em mais uma narrativa que faz a crítica feroz ao sistema e a exposição da crise, da impotência, da angústia, do desespero, da dor.
Em cena, uma família típica, em Newcastle, um casal de trabalhadores, o filho adolescente e a filha menor. No seio dessa família, o drama da luta pela sobrevivência num mundo que propõe o indivíduo sem valores, uma economia que determina que o ser humano deva ser medido pela sua capacidade de produção. Ricky (ator Kris Hitchen), trabalhador, marido e pai, na roda viva incansável e desumana de um motorista de van, entregador de pacotes, monitorado por um aparelho digital que rastreia e mede sua eficiência, rapidez, competitividade, desempenho, cumprimento de metas e satisfação dos clientes. No personagem, a figura socialmente construída do "novo empreendedor", "autônomo", sem contrato, sem cartão de ponto, sem horário de jornada, sob o absoluto controle externo de suas horas e seu tempo, com a força de trabalho e a própria vida à disposição da dominação e da perversão do "livre mercado". Nos lemas da franquia, "Você não trabalha para nós, você embarca, você trabalha conosco; Você não é empregado mas colaborador; Você não dirige para nós, você presta serviços", a nova escravização, o homem cercado pela falsa ilusão da liberdade, sem tempo algum para a família e para ele próprio, na uberização da vida.
O martírio e o estresse jogam e projetam o conflito social para dentro da família, onde os papéis se dilaceram, se despedaçam. Abby (atriz Debbie Honeywood) é a esposa e mãe, trabalha como cuidadora terceirizada, também sem horários e limites, que se desdobra dia e noite entre vários ônibus e trajetos, para atender homens e mulheres, também desvalidos, onde os dramas se acoplam, se superpõem, num grande colapso físico e emocional.
Trabalho e família, pais e filhos, relações que vão se esgarçando, se desestruturando, se esgotando. O jovem Seb, 16 anos, (ator Rhys Stone) passa a transitar da carência à rebeldia, ao abandono escolar, e à quase delinquência. A menina Lisa Jane, 11 anos (atriz Katie Proctor), dentro do quadro opressivo sinaliza a esperança, no seu protesto e no grito pela volta da humanidade e do amor dentro da família, pela volta a um tempo de paz dentro da casa.
O processo do drama e dos conflitos, o seu agravamento na vida de dentro e de fora dos personagens, parecem sem controle, à deriva, sem retorno, sem volta.
Loach constrói um painel social ácido e doloroso, por vezes seco, por vezes no tom do melodrama. Seu olhar generoso, apaixonado e emocionado sobre a humanidade, sobre as classes populares, faz a crítica e acima de tudo, comove plateias, mundo afora.
Em entrevista recente, por ocasião do lançamento do filme no Brasil, Ken Loach surpreende pela sua declaração de esperança. "Há dois motivos para a esperança. O primeiro é que os povos sempre resistirão e alguém sempre lutará. O segundo é que vivemos num sistema que não pode continuar por muito mais tempo".
Sobre seu cinema, "Eu acredito que cada um de nossos atos pode refletir a nossa sensibilidade política, inclusive no cinema. Os assuntos que escolhemos para lidar, os personagens que colocamos na tela.... é uma escolha política. Todo filme é um ato político".

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