O Oficial e o Espião

J'ACCUSE!


Em cartaz o novo filme de Roman Polanski, O Oficial e o Espião (J'Accuse! / França - Itália, 2019), vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza (2019) e do César Awards de melhor diretor (2020), onde o filme recebeu 12 indicações.
Polanski, nos seus 86 anos, de volta às telas numa adaptação do livro do britânico Robert Harris, depois de suas obras mais recentes, Baseado em Fatos Reais (2017), A Pele de Vênus (2013), Deus da Carnificina (2011), O Escritor Fantasma (2010), Oliver Twist (2005), O Pianista (2002).
No centro deste argumento está o famoso, brilhante e explosivo artigo J'Accuse, do escritor Emile Zola, publicado no jornal francês L'Aurore, em 1898, dedicado aos juízes e militares que condenaram injustamente o militar judeu, Capitão Alfred Dreyfus, por alta traição à França, em fins do século XIX.
Na trama a luta ética e determinada de um oficial, o tenente-coronel Picquart, protagonista vivido pelo ator Jean Dujardin, ao retomar pistas, investigar, revelar e provar a verdade e denunciar os erros cometidos no processo, nas provas e na sentença. Sua ação contraria e desafia a hierarquia e a corte militar colocando em risco sua carreira e a própria vida. Alguns anos antes, 1894, Dreyfus fora condenado por seus inimigos à prisão perpétua no exílio da Ilha do Diabo, colônia penal na Guiana Francesa.
"Caso Dreyfus", mancha na história da França, escândalo político e fraude jurídica, tema histórico revisitado, de caráter atual, sobre a imposição e a farsa judiciária e militar na condenação de um inocente. No papel de Dreyfus o ator Louis Garrel, em sensível interpretação.
Mais uma vez em cena a aguda questão, que atravessa tempos e lugares, e que permanece, a do inocente ou culpado. E, nessa rota, mesmo sem vestígios dessa intenção, é inevitável associar a história também à trajetória de sofrimento do diretor franco-polonês, perseguido pelo nazismo em sua juventude e pelas acusações que enfrenta há décadas no caso do crime, já prescrito, mas que não sai de pauta, de violação de uma menor, ocorrida nos anos 1970.
Produção de época com direção de arte e figurinos muito bem cuidados, filme soturno, em tons sóbrios e sombrios, sobre farsas, imposturas, espionagens e manobras, encenado em gabinetes, quartos, celas e tribunais. Mais uma obra de estilo, marcante e instigante do virtuoso mestre Polanski.
Numa 5a. feira, 12 de março, dia de estreia no Estação Net Botafogo, o cinema vazio já como reflexo do pânico do Coronavírus, Polanski sem público. Junto a isso, com certeza, a polêmica sexista e persecutória sobre o diretor, o Rio em tempos avessos à cultura, a crise econômica. Na sessão das 21h10, filme assistido por apenas 4 pessoas.
Um libelo que se aplica ao mundo atual, aos ciclos que se repetem na espiral do tempo. Lá estão os flagelos atemporais da intolerância, do culto exacerbado ao nacionalismo, da reverência hipócrita a valores morais e autoritários.
A cena noturna da grande fogueira ardendo na praça, queimando os exemplares do jornal L'Aurore com o artigo J'Accuse de Zola, cercada da histeria e revolta popular, revela o estado de barbárie de uma sociedade, que representa muitas outras.
Hanna Arendt, em seu livro As Origens do Totalitarismo, cunhou, pelo episódio, a expressão "antidreifusard", que projetou ainda como um tema contemporâneo, significando os valores que fundam o que é antissemita, antirrepublicano e antidemocrático.
Na narração dessa história, o cinema técnico, estético, impecável, inquieto, crítico e maduro de Roman Polanski.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas