Rio 40 Graus

RIO 40 GRAUS, CINEMA NOVO 65 ANOS DEPOIS


A Cinemateca do MAM - RJ, no projeto CineAcademia, exibiu na terça 7.1 no Espaço Itaú de Cinema, em sessão única e debate ao final, o clássico Rio 40 Graus (100m), de Nelson Pereira dos Santos, remasterizado, em 35mm. Filme seminal, realizado em 1955, censurado por ser considerado comunista, posteriormente liberado, e que só estreou em 1956.
No debate do filme, apresentado e saudado pelo cineasta Cacá Diegues, o poeta e escritor Geraldo Carneiro e o crítico Rodrigo Fonseca teceram comentários preciosos e inspirados sobre Nelson, o filme, seu cinema. Plateia de admiradores, com cineastas, escritores, jornalistas, para a sessão de um filme que, nas palavras de Cacá, "inaugurou o moderno cinema brasileiro".
O filme, com muito uso de câmera na mão, totalmente feito em externas, com fotografia de Helio Silva, rompe com o padrão então vigente da empresa paulista Vera Cruz, de produção de estúdio, que buscava reproduzir e adaptar o estilo de cinema de Hollywood. Filme de baixo orçamento, com uso de negativos contrabandeados, para escapar da censura, foi rodado com uma câmera emprestada a Nelson por Humberto Mauro, então na direção do INCE.
Rio 40 Graus começa grandioso, a partir de um plano aéreo de câmera que mostra o morro do Pão de Açúcar, vai descortinando toda a cidade, com os créditos de abertura, até enquadrar uma favela (pela primeira vez no cinema), ao som instrumental do samba A Voz do Morro, de Zé Keti, com arranjo de Radamés Gnatalli. Do plano aéreo, o corte para as vielas da favela, com o dia a dia de luta pela sobrevivência de seus moradores. Tem início a obra que marcou rupturas com modelo e tradição da nossa cinematografia e deu início ao Cinema Novo no Brasil.
Um sensível e magistral painel sobre o Rio de Janeiro, em linguagem inspirada no neorrealismo italiano de De Sica e Rosselini, que conjuga de forma híbrida os modos documentário e ficcional, com um elenco principal de não atores, ao lado de atores em início de carreira, como Jece Valadão e Glauce Rocha, e outras participações especiais marcantes, de Modesto de Souza, Roberto Batalin, Sady Cabral e Martin Francisco.
A narrativa, fragmentada, constituída menos por uma história e mais por um conjunto de situações, envolvendo uma tipologia das classes populares, dá destaque a um grupo de 5 menores, negros, moradores da favela do Cabuçú, pequenos vendedores de amendoim, que descem, circulam e se espalham por diversos pontos da cidade, para vender seu produto e obter os trocados para ajuda de suas famílias.
Um filme emblemático sobre o universo popular, que constrói e traduz referências sociais e culturais do Rio, percorrendo lugares e manifestações de suas mais conhecidas representações, como Maracanã, Pão de Açúcar, Corcovado, Copacacana, Futebol e Carnaval. Um olhar entre o sociológico e o poético, entre a crônica o ensaio urbano, que captura a essência da cidade partida, nos limites e desventuras de seus personagens que vivem à margem, nas mais diversas situações de risco, opressão, aflição. Câmera ágil, planos expressivos e montagem com cortes sempre surpreendentes, esta inspirada também na admiração de Nelson pela escola soviética de Vertov e Eisenstein.
Nelson, cinéfilo e cineasta, admitiu certa vez que De Sica era quem mais admirava, pelas suas associações do realismo social com o humor. Esse espírito é trazido a seu filme, visto em alguns diálogos que compõem a chamada malandragem carioca, o sambista Zé Keti encarna um desses malandros, na astúcia exemplar dos desvalidos, nos botequins, nas apostas, nas subidas do morro.
Rio 40 Graus mostra o percurso de um dia, do amanhecer ao anoitecer, na vida agitada na cidade, faz o perfil de personagens com seus pequenos e grandes dramas e desejos.
Entre suas citações, faz também tributo às chanchadas, na construção de algumas figuras caricatas, como a do político e a de um chefe de família de turistas, e em algumas correrias desabaladas por ruas e becos, dos meninos perseguidos ao som dos apitos dos guardas.
Roma Cidade Aberta, Milagre em Milão e outras referências do neorrealismo italiano são influências inegáveis no cinema precursor de Nelson Pereira dos Santos. Delas também retira, ao lado do trágico, a esperança de que a vida poderá ser melhor num dia que virá.
O filme, elogiado pelo famoso teórico francês de cinema, André Bazin, mostra um Rio que mistura o morro e o asfalto, a relação de classes, a desigualdade social, a música negra do samba, o jogo de ganhar e perder, a fronteira entre a busca, o sonho e o infortúnio.
A primorosa sequência, próxima ao final do filme, que faz os cortes entre o gol e sua comemoração festiva no futebol do Maracanã, e o atropelamento na rua do pequeno vendedor de amendoim, é um dos pontos altos do cinema brasileiro. A seguir, os faróis dos carros e as velas acesas junto ao corpo do menino, fazem a triste sinfonia regida por Nelson, onde a câmera sai do chão e vai subir, em movimentos incessantes, até a favela, até o barraco com a mãe imóvel que espera o filho na janela, indo aos céus, a indicar, talvez, promessa de vida. Ao mesmo tempo, a comunidade do Cabuçú comemora o carnaval, a festa da utopia, ao som de cantoria e tamborins, gingados do corpo e dos pés, no epílogo a expressar o seu enunciado musical, a voz do morro.
"Eu sou o samba, a voz do morro sou eu mesmo, sim senhor.
Quero mostrar ao mundo que tenho valor,
Eu sou o rei dos terreiros".
(Zé Ketti)

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