Boccaccio '70


BOCACCIO '70 - CINEMA, SÁTIRA, DESEJO, PICARDIA

Rever Boccaccio '70 (Itália/França - 1962) na Mostra Fellini, Il Maestro, no CCBB - Rio, é reencontrar o cinema italiano do encanto e do deslumbre, expressão da excelência da comédia clássica, farsesca, picaresca.
Dividido em 4 episódios, o filme reúne os mestres Mario Monicelli, Federico Fellini, Luchino Visconti e Vittorio De Sica, que pintam na tela a sedução irresistível. Como as 4 protagonistas, Marisa Solinas, Anita Ekberg, Romy Schneider e Sophia Loren, atrizes de carisma, beleza, sensualidade e força interpretativa, arrebatam olhos e imaginação.
A partir das novelas do Decameron, clássico literário escrito por Giovanni Boccaccio no século XIV, o erotismo, a sátira social, a crítica ao moralismo e ao puritanismo imprimem e impregnam, atualizadas por seus realizadores, que constroem narrativas sobre temas, conflitos e interditos em torno do amor, da paixão e do sexo. Nos episódios, o relacionamento amoroso proibido e escondido no mundo do trabalho e da família (Renzo e Luciana - Monicelli), a ironia mordaz sobre o comportamento da direita moralista italiana, a obsessão e a repressão sexual (As Tentações do Dr. Antônio - Fellini), a crônica da decadência dos valores éticos e morais da aristocracia (O Trabalho - Visconti), a mulher sensual objeto do desejo exacerbado masculino em uma aldeia do interior (A Rifa - De Sica).
Um filme emblemático, de grande apelo, poder de síntese e inspiração. Que combina magistralmente, erotismo, paixão, fantasia e delírio com questões de classe e crítica à hipocrisia moral e social. Painel para o exercício da criação cinematográfica dos 4 grandes mestres, com seus diferentes estilos, na representação do talento, qualidade e tradição do exuberante cinema italiano dos anos 60.
Nesta edição, exibida no CCBB, a inclusão rara do segmento de Monicelli, retirado de outras edições do filme, limitadas apenas ao conjunto das outras três histórias. A oportunidade especial de assistir Boccaccio '70, completo, com seus antológicos 208 minutos originais.
No foco sobre Fellini, impossível não destacar no seu episódio, As Tentações do Dr. Antonio, a presença de Anita Ekberg literalmente dando corpo à figura da mulher a ser desejada, que se fará presente em quase toda a obra do diretor, cuja prévia já tinha sido dada, por ela própria, no seu filme anterior, A Doce Vida. 
A matrona de seios fartos, forte apelo e conteúdo sexual, perturbador, está lá, a seduzir de forma implacável, transfigurada em objeto da tentação entre os planos do real e do onírico.
A sequência de cenas aéreas da montagem do painel do outdoor com a figura gigante e voluptuosa de Anita, os cortes rápidos de câmera, o ritmo de encaixe das peças na junção dos pedaços de seu corpo, o atordoamento generalizado que provoca, não só aos olhos atônitos de Dr. Antônio, mas nos de todos nós, expectadores, tudo isso não só estampa o imenso cartaz publicitário, com a imagem fetiche da mulher fatal em sua quase nudez que seduz ao vender seu produto, "bevete più latte / bebam mais leite". 
Mais do que isso, estampa o próprio poder de captura de que é capaz a imagem produzida pelo cinema do gênio criador. Ali a suprema metáfora e representação do poder de sedução da escritura cinematográfica do cinema de Fellini. O outdoor em construção, o corpo ampliado de Anita Ekberg em construção, a mulher e sua inevitável sedução em construção, traduzem um dos momentos e um dos símbolos mais completos e impressionantes do que se começou um dia a nomear como a imagem felliniana.

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