Os Palhaços

I CLOWNS, MATÉRIA DE SONHO


Por mais óbvio para alguns, nem tanto para outros, a matéria de ilusão e sonho, pedra fundamental do cinema de Fellini, que espalha-se pelos seus inúmeros filmes de ficção, e que nos trazem o drama, o humor, o insólito, o inusitado, é muito inspirado na alma circense e em seus personagens, que habitam os limites entre realidade e fantasia.
Entre as fábulas imaginárias de Fellini, sua obra contém um único filme documentário, Os Palhaços (I Clowns / 1970 / Itália / 88m), encomenda da emissora italiana RAI, de Rádio e TV. Que comemora 50 anos este ano.
Entrevistas e depoimentos que contam histórias, números e atrações circenses, pesquisas e perfis de palhaços famosos, resgate de palhaços esquecidos, encontrados e desaparecidos, se misturam com a participação do próprio Fellini na tela.
Numa alusão à paixão pelo circo, o filme começa com a chegada do circo à uma praça de uma cidade de interior qualquer. Da janela de casa próxima, o menino desperta e, fascinado, vê erguerem-se as tendas do circo, para dele nunca mais esquecer, dele não mais se separar. Vai ao encontro daquele mundo, nele entra, ali se mistura a seus extraordinários habitantes, para dele não mais sair.
"Respeitável público! O Circo chegou! O maior show da Terra"
O menino, por óbvio, é Fellini. Ali, a magia, a imaginação, o encantamento e a ternura, marcas do universo narrativo do mestre. Ali, as bases do invento felliniano, o espetáculo, a brincadeira, o lúdico, o improviso.
Diante das primeiras cenas do mirabolante show bizarro e encantado, de cores fortes, magia, audácia e movimento, a primeira visão do menino já fundia o alegre e o triste, o fantástico e suas referências de realidade, na narração do próprio Fellini: "Aquela noite terminou mal. Os palhaços não me fizeram rir e sim, ao contrário, me assustaram. Aqueles rostos de gesso, expressões indecifráveis, aquelas máscaras retorcidas, os gritos, os risos, as piadas atrozes...me lembravam outras figuras estranhas, inquietantes, que vagam por cada aldeia do campo".
Mesmo com o estilo documentário, instantes de imaginação e poesia fundam o filme. Nele, Fellini constrói e insere cenas dramatizadas, ficcionais e fantasiosas, com personagens de sua memória, palhaços reais das lembranças de sua infância.
O filme visita circos, na Itália e na França, documenta situações reais, performances nos picadeiros, o atrás das cortinas, e também Fellini refaz e dirige números circenses clássicos e reconstitui algumas cenas exemplares a ele contadas.
Em Os Palhaços, um cinema de homenagem a uma arte em extinção, misto de anarquia, loucura, rebeldia, alegria e poesia, que sai de cena e é, sem dúvida, território e universo matricial de Federico Fellini.
Já no final do filme, após a reencenação de um conjunto de números exuberantes, um velho palhaço, já cansado, pergunta a Fellini: -- Dottore, posso andare a casa? (Posso ir embora?). Ali, se fecha o picadeiro, luzes vão se apagando, ao som de lamento de trompetes, 2 palhaços trompetistas que vão lentamente saindo de cena. Ali, o circo se vai, como memória e melancolia, tempo a saudar, a lembrar, a reverenciar.
Fellini se definia como um grande mentiroso, a principal mentira que contava era a de que tinha fugido com um circo quando menino. Nunca foi desmentido.
No mês e ano do seu centenário, vale lembrar seu único documentário, em meio a tantos clássicos, Os Boas Vidas, Oito e Meio, A Doce Vida, A Estrada da Vida, As Noites de Cabíria, Satyricon, Roma, Amarcord, E La Nave Vá, e muitos outros, feitos da mesma matéria, do sentimento, da ilusão, da memória, da fantasia e do sonho.
Numa de suas falas iniciais no filme, il maestro não hesita em dizer: "O mundo ao qual pertencia, não mais existe".
Em Os Palhaços, obra prima onde se fundem o drama e a comédia, um filme de Fellini sobre si mesmo.

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