Mangueira 2020

A MANGUEIRA NA AVENIDA E NA TV.
NOVAS CRUCIFICAÇÕES


A propósito do enredo Mangueira 2020
"A Verdade Vos Fará Livre".

Um enredo de carnaval, como um filme, constrói uma narrativa, tem um conceito e uma proposta estética. A partir dele, as cores volumes e formas, fantasias, alegorias, conjuntos. O visual de uma escola que passa não traduz beleza apenas em brilhos e luzes de led. A cor negra da fantasia da bateria da Mangueira foi ousada, dando imagem e tom à imensa escuridão de que fala o samba.
Não foi fria a escola nem o desfile. Sua transmissão sim, no mínimo suspeita, capciosa, fria, desinteressada, em tom de desprezo, abordagem reta e sem curvas, incapaz de penetrar nas camadas mais profundas, de mostrar os significados da criação de um carnaval e enredo crítico, bem elaborado.
A arquibancada e sua empolgação, não podemos avaliar pelo que foi mostrado, e tenho dúvidas sobre esse termômetro e sobre a forma com que o público expressa sua emoção ou entusiasmo.
O desfile da Mangueira apresentou lances extraordinários, os vários Jesus, as diversas crucificações, suas várias faces, seus vários tempos na história, a rainha de bateria como personagem de enredo, como a/o Jesus mulher em passos de representaçâo dramática, absolutamente diferenciado, inovador. A favela como lugar da ressurreição.
Na encenação da comissão de frente, a "dura" da polícia carioca em Jesus e seus apóstolos, mereceu do comentarista e ex-carnavalesco Milton Cunha, a prosaica explicação de que aquela era "a polícia de Roma". Já nos indicavam e antecipavam ali, a Globo e seus comentaristas amestrados, como seria a forma de contar, driblar e evitar aquele enredo. A imagem do rosto do menino crivado de balas, representando a matança de crianças e jovens negros, as frases "favela pega a visão, não tem futuro sem partilha nem messias de arma na mão", não mereceram nenhum comentário. Entre incompetente e tendenciosa, a marca, o dna da emissora.
A Mangueira foi linda, inteira, intensa e profunda, num enredo bem criado e bem desenvolvido, trazendo e incorporando Jesus nas mazelas e nos perseguidos do nosso tempo. Trouxe uma leitura social e política da vida de Cristo, com uma estética refinada, sua atualização no mundo real do buraco quente, das fendas e frestas da vida real dos oprimidos.
Arte e crítica social que se contrapõem ao fundamentalismo religioso reacionário de direita que tomou conta dos morros cariocas, que afasta a comunidade de seu lugar no mundo do samba e da cidadania. O Jesus da Gente da Mangueira é histórico.
A Globo se esquivou, se desviou, se amedontrou, esfriou, desprezou, andou de lado, cumprindo seu papel de sempre, o de recortar e esconder o que não lhe interessa.
Mas, em samba, política e futebol, vale a emoção e o afeto de cada um, o que se vê, percebe, espera e sente. O choro é livre.
A TV define um modo de narrar, entre o que oculta e o que revela, e é preciso estar atento. A brincadeira do carnaval é coisa séria.

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