Cicatrizes

CICATRIZES, CINEMA E A COSTURA DA DOR


Alguns filmes importantes ficaram de fora entre os nomeados ao Oscar 2020 de filme internacional, vencido com todo mérito pelo sul-coreano Parasita, de Bong Joon Ho. Um deles é o surpreendente Cicatrizes (Sérvia / 2019), de Miroslav Terzić, indicado e não selecionado para a competição. 
Cicatrizes é um drama intenso sobre a dor da ausência e da perda. Uma mãe, vivida pela atriz Snezana Bogdanović, procura de modo incansável, durante 18 anos, um filho, dado como morto ao nascer, pelo informe do hospital, versão em que ela nunca acreditou.
Duas cenas, logo no início do filme, são exemplares. Nas duas, em casa, Ana está à mesa com seu marido e com sua jovem filha. Nas duas cenas, o homem sai, sai também a menina. Tanto numa como na outra cena, Ana fica sozinha. Nas cenas, o indicativo de uma mulher absolutamente sozinha, solitária. Na sua luta e na sua fantasia de que seu filho está vivo e que dela foi roubado e vendido para adoção. Numa das cenas, um bolo de aniversário sobre a toalha enfeitada, velas são sopradas por ela, a celebrar em silêncio torturado mais um ano de vida de um filho que não está ali.
Ana trabalha como costureira, na máquina de costura, faz moldes, corte e costura. Costura panos, costura roupas, costura memórias, sofrimentos, feridas abertas que não cicatrizam. Mas ali também alinhava e costura a determinação e a esperança.
Ana peregrina diariamente numa delegacia de Polícia cobrando resultados da burocracia pela investigação sobre a morte de um filho, cujo corpo nunca foi encontrado e sepultado. Também diariamente vai ao hospital onde nasceu seu filho, misteriosamente dado como morto. Lá encara, questiona e lança suspeitas diretas à médica que fez seu parto.
Políciais da delegacia, médicos e funcionários do hospital não suportam mais o assédio daquela mãe obsessiva, contundente, compulsiva, inoportuna, que não os deixa em paz, fazendo-lhe graves ameaças se ela não parar e não recuar de seus atos.
Uma mulher sem paz, que mina aos poucos, a cada dia, o relacionamento familiar com o marido e a filha, que não suportam ver Ana dedicar sua vida à uma causa em que decidiram não acreditar, para poder seguir suas vidas. O marido a acusa de não mais ter esposa, a filha a rejeita expressando nunca ter sido amada pela mãe. Imploram e exigem que essa mulher aceite a morte de seu filho e que viva para os que estão vivos, ao seu lado.
Conflitos se sucedem e se ampliam ao longo de uma narrativa áspera, depressiva, dolorosa, de alta densidade psicológica, onde o vazio da vida e da morte se confundem a cada minuto, hora, dia, mês e ano.
Mas Ana nunca se conformou, não acredita que seu filho esteja morto, desacredita de uma verdade a ela imposta. Segue sua busca implacável, contra tudo e contra todos, atrás de pistas, indícios, novos e furtivos contatos, que possibilitem revelações.
Ela pouco fala, pouco ouvimos sua voz, move-se quase todo o tempo em silêncio, na sombra de sua própria dor. Sua força interior, uterina, visceral, salta e irradia pelos olhos, seus olhos são faróis luminosos, impressionantes, a tentar jogar luz onde o escuro domina, cerca e perpassa uma história ainda incompleta. Um jogo cênico e cinematográfico entre a câmera, o rosto e os olhos da atriz, de grande maestria.
Um filme que vai nos tomando a cada sequência, uma atrás da outra, nos levando com Ana pelos caminhos, percursos e destinos em que ela não desiste de se lançar.
Em algum momento, um turning point faz o filme dar uma grande virada. Que surpreende, renova, altera os rumos da história. Rastros se tornam visíveis e a luz começa a se impor à escuridão, removendo interditos, obstáculos, tornando possível a impossibilidade, podendo trazer vida onde o estabelecido e o notificado é a morte. O filme entra em outra velocidade, onde a dinâmica substitui o ritmo mais lento, onde um novo sopro de humanidade invade e cria novas expectativas. Uma nova realidade surge na tela, mesmo que ainda com enigmas e ainda permeada pelas angústias que não deixam de marcar a vida da personagem.
Um filme que evitou super dimensionar sua protagonista, nunca lhe conferiu status de "mãe coragem", jamais tornou overacting a representação da extraordinaria atriz, de grande magnetismo, não elaborou tons e tintas de um drama desesperado. Ao contrário, construiu uma personagem sóbria, que apenas reluta tenazmente em vestir o luto.
Um filme minimalista, que optou pela aridez e a amargura silenciosa. Um filme que realça a perseverança, o destemor, o faro, o sentido de vida e amor, que são inerentes apenas e somente à uma notável e singular persona, a que só podemos reverenciar, e que se intitula, em sua urgência e fé, pelo nome de mãe.
Ao final, nos créditos de encerramento, somos informados que estamos diante de uma história real, a história de roubos de bebês nascidos em hospitais da Sérvia, desde os anos 1970. Casos que ficaram sem solução, com governos acusados de violação de direitos humanos.
"Mais de 500 famílias na Sérvia procuram por bebés desaparecidos. Até a data deste filme, nenhum caso foi resolvido".

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