Viver para Cantar

VIVER PARA CANTAR, ÓPERA ENTRE A ARTE E A VIDA


Depois de riscos de não se realizar este ano, chega às telas o Festival do Rio 2019, com filmes importantes, muitos deles já exibidos e aplaudidos nos principais festivais internacionais de cinema deste ano. 
Abrir o cardápio e começar a degustar o que de melhor podemos assistir, nesta curta e sugestiva temporada de cinema.
Uma produção China/França/Canadá (2019), Viver para Cantar, filme de Johnny Ma, estreia no Festival do Rio, depois de exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes e na Mostra Internacional de Cinema em SP desse ano. Inspirado no documentário A Folk Troupe (2013), uma história real que se transportou para o ficcional com ótimos roteiro, atuações, direção de arte e direção cinematográfica.
Na filme, uma trupe familiar de atores que vivem e sobrevivem da apresentação de números da tradicional, alegre e densa ópera de Sichuan, e que encena os espetáculos em seu modesto teatro, em cidade do interior da China. Localizado em região de periferia e alvo de especulação imobiliária, a trupe e sua veterana líder e administradora Zhao Li (atriz Zhao Xiaoli) resistem com bravura à ordem de demolição de sua casa teatro. Os olhos e o ponto de vista da personagem principal, que a tudo observa e fixa, constituem uma espécie de modo de narrar o filme.
Drama e musical de cores fortes, o trágico das narrativas da fantasia e da ilusão operística se funde com a crônica realista da ameaça de sobrevivência de uma família de atores e de uma tradição cultural milenar, que parecem não ter mais lugar numa China moderna e de outros gostos.
As imagens agressivas das demolições, com máquinas que destróem casas, histórias e passados, vão se aproximando vertiginosamente do velho teatro, que agoniza mas respira, mesmo na poeira que o circunda, com seus cantos, danças, figurinos, máscaras, tradições, luta e esperança.
O filme constrói com imagens, poesia e música, linguagem alegórica e metáforas sobre a existência, uma epopéia em homenagem à defesa da cultura e da propria vida. Os conflitos internos dentro da companhia, entre os mais velhos e os mais moços, mostram o enlace e o desenlace de ideais, lealdades e convicções, entre os que querem lutar ou desistir, ficar ou sair. A escolha entre a permanência na velha casa e suas sessões de ópera ou o mundo novo do lado de fora.
Os enfrentamentos entre Zhao Li e sua jovem sobrinha Dan Dan (atriz Gan Guidan), a cantora protagonista da ópera, dão o tom do drama, nos bastidores além e fora do palco. No ao redor do impasse famíliar de gerações, a presença de um público cativo e fiel, que se entrega, se identifica e aplaude cada espetáculo encenado. No contraponto,  o movimento incessante das máquinas, personagens de ferro, gigantes e perversos, de uma outra ópera, a do aniquilamento e do silenciamento de vozes, cantos, danças, gestos, tradições, alma e espírito.
Viver para Cantar, uma ode poderosa à resistência cultural, oportuna e necessária em qualquer tempo e lugar, onde a opressão desmedida tenta se impor aos valores que constituem e dignificam uma nação, sua história e seus significados mais profundos.
Filme de camadas, intenso nas representações da ópera, na dança e no confronto, nas escolhas internas dos personagens, onde oscilam realidade e fantasia.
A sequência final, visceral, encantada, real ou imaginária, do número musical encenado pela trupe sobre as ruínas e escombros de sua casa, seu teatro, seu lugar, seu mundo, é o sinal de que a vida vai procurar novo caminho.
Um filme de força, afetos e delicadeza, uma viagem entre o sensorial, o imagético, o crítico e o reflexivo, sobre a arte, a cultura, a paixão, a existência dos outros e a de nós mesmos.

Comentários

Postagens mais visitadas