Mangueira em 2 Tempos

MANGUEIRA, CINEMA E AFETOS.


Festival do Rio 2019, Première Brasil, filme documentário de Ana Maria Magalhães, Mangueira em 2 Tempos.
Ana Maria, mulher marcante no cinema brasileiro, como atriz desde os fins dos anos 60 e diretora desde os 80, na cena e atrás das câmeras, sem dúvida, uma persona do nosso cinema.
Lá estava nas telas em Todas as Mulheres do Mundo, junto com outra musa, Leila Diniz. Azyllo Muito Louco, Como Era Gostoso Meu Francês, Quando o Carnaval Chegar, Uirá (prêmio Kikito de melhor atriz - Gramado/1975), Lúcio Flávio Passageiro da Agonia, Os Sete Gatinhos, A Idade da Terra, alguns dos muitos títulos em que brilhou, atraiu, encantou.
Como diretora, já com diversos trabalhos, um deles o premiado documentário Reidy - A Construção da Utopia (2008), há 10 anos vem se dedicando ao projeto Mangueira em Dois Tempos, que nasceu como sequência do vídeo Mangueira do Amanhã, de 1992, com que venceu o prêmio Margarida de Prata, da CNBB.
"A cultura tem duas asas, a erudita e a popular, sem as duas a cultura não levanta vôo". Citando essa frase de Darcy Ribeiro, em sua apresentação na estreia do seu filme, no Cine Gávea, Ana Maria declara sua identificação com o universo da cultura popular, que se traduz na sua imersão no mundo da Mangueira " ‐- essa turma é a minha turma", e define seu filme como um cinema de afetos. Nas imagens, vemos o desenrolar de histórias, personagens, lutas, superações, vitórias, buscadas e inspiradas na comunidade verde-e-rosa e transportadas para um cinema que respira música, ritmo, percussão, desafios e acima de tudo, humanidade.
O que dá sequência e incorpora o anterior Mangueira do Amanhã, que registrou, décadas atrás, crianças da escola de samba mirim, acompanhou um elenco que tinha entre 7 e 12 anos, nos preparativos, ensaios e desfile, nos ritos de iniciação de amor ao samba e ao pavilhão da Escola.
O novo filme veio resgatar as imagens anteriores, a influência do samba na vida daquelas crianças, e revisitar seus personagens, encontrá-los já adultos, alguns ainda com a vida ligada à Escola e ao mundo do samba, e algumas das meninas, em particular, afastadas em nome da opção pela igreja evangélica, de grande ocupação nos morros cariocas. Novamente reunidos, uns mais à vontade e outros menos, narram suas histórias, trajetórias, a dura condiçâo de moradores de favela, dificuldades, renúncias, apostas e sacrifícios passados durante os anos entre os dois documentários.
Deles, emergiu como protagonista do novo filme um dos antigos meninos, então com 12 anos, o mestre Wesley, talentoso novo diretor de bateria da Escola campeã do Carnaval 2019, que obteve, de forma obstinada e depois de 18 anos, as tão ambicionadas 4 notas 10 para a bateria da Escola. Esse, um instigante risco do filme, que virou um dos seus trunfos. Nas filmagens, ainda em 2018, Wesley afirma com vigor e emoção que, na avenida " ‐- comeria aquele chão", que iria trazer de volta pra Escola as 4 notas 10! E a Escola ganhou! E com as 4 notas 10! Um elemento mágico, na margem tênue entre fracasso e sucesso. Que aponta a força, a fé e a ousadia do personagem e também do filme.
Um filme generoso e amoroso, e que segundo sua diretora, " ‐- veio para retribuir a confiança e a entrega dessas crianças".
Além dos principais personagens, o filme traz as figuras emblemáticas de Ivo Meirelles, Alcione e Carlos Malta, entre outros, para ajudar a contar uma história de amor e paixão, onde passa a Escola, passam os sambas, e passa o tempo.
Um filme que faz conexões entre passado e presente, entre o samba e o funk, entre avanços e recuos, entre arte, criação, trabalho, vida. Essencialmente, entre pessoas que se reinventam para sobreviver no difícil mundo em que habitam, lutam e sonham. Neste cinema, fica nítida a reciprocidade entre o documentário e seus atores sociais, todos têm a ganhar, na tela e fora dela.
Mangueira em 2 Tempos celebra o ritmo marcado pela batida em dois tempos de sua bateria, do surdo de marcação e das batidas do coração. Dos tempos sofridos, percutidos, sensíveis, surpreendentes, de escolhas e destinos. Um filme onde a vida se reencontra, se renova, segue, busca novos caminhos, continua.

Comentários

  1. Um lindo texto pra um lindo e comovente filme. Não parei de me emocionar e chorar. Obrigado Ana Maria, obrigado Mangueira, por me mostrar que ... a esperança BRILHA MAIS NA escuridão.

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    1. Lindo comentário, querido Luiz Fernando!

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    2. Obrigada, Luiz Fernando, obrigada Demerval! O melhor que pode acontecer a um realizador é saber que seu filme foi compreendido e tocou as pessoas., sobretudo nesse período escuro da nossa História.

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  2. Mensagem recebida da jornalista Maria Luiza Franco Busse:
    Querido Dermeval, se o filme tiver que correr mundo com um texto, esse texto é o seu. Aplausos em dois tempos. Beijos.

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