Humberto Mauro

HUMBERTO MAURO, O TEMPO E O CINEMA A FIAR


No mês de abril de 1997, no cargo de Superintendente da TVE/RJ, convidei o ator André Mauro para organizarmos uma semana dedicada a Humberto Mauro, seu tio avô. Comemorava-se o centenário do grande mestre e pioneiro do cinema brasileiro. Conseguimos resgatar, selecionar e obter os direitos de exibição de várias obras de Mauro, fizemos a homenagem com filmes e debates na grade da TVE. A cereja do bolo foi convidar outro mestre, Dib Lutf, para ir a Cataguases-MG filmar locações e histórias do cineasta, no lugar em que viveu e inventou seu cinema, para a produção de um especial em sua memória.
Humberto Mauro (1897/1983), e seu cinema de descoberta do Brasil, iniciado nos anos 1920, é nome pouco conhecido no país diante de sua grandeza como artista e cineasta que fez a crônica, o drama, o documental e a poesia em imagens, descortinando o mundo rural brasileiro, nossa paisagem, nossa humanidade, nossa cultura.
Inspirador do cinema novo, dos anos 50 e 60, foi celebrado pelos principais autores do movimento, tendo em Glauber Rocha um entusiasmado admirador. Em seu livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (Ed. Civilização Brasileira/1963), Glauber dá a Mauro o título de "pai do cinema brasileiro", e faz o elogio de sua estética cinematográfica e de sua construção do homem brasileiro em nosso cinema.
André Di Mauro, após lançar o livro Humberto Mauro -- o Pai do Cinema Brasileiro (Ed. Giostri/2013), estreou em circuito seu filme documentário Humberto Mauro ‐- Cinema é Cachoeira (2018), exibido no ano passado nos Festivais de Cinema do Rio, de Brasilia e de Veneza.
Trata-se de uma sinfonia visual sobre a obra de Mauro, com a edição de trechos, planos, sequências, de seus inúmeros filmes, na sua extraordinária variedade, e uma trilha de áudio off, com depoimentos do próprio Mauro, extraídos de algumas entrevistas e conversas, como a que foi feita nos anos 1960 para o MIS - Museu da Imagem e do Som.
Um concerto primoroso em sons e imagens, coletados em cerca de 70 filmes (de uma obra de mais de 350 filmes), desfila diante de nossos olhos, com comentários informais do próprio cineasta sobre sua história, suas experiências, seus conceitos, sua paixão, sua técnica, seus inventos. Vemos um cinema múltiplo, em seu esplendor, ouvindo suas ideias sobre seu modo de filmar, sua construção de planos, seus improvisos, sua admiração pela natureza, seu "filme natural", com notável simplicidade a definir seu notável cinema. Também causos e blagues. " ‐- quando vou filmar a natureza, não chego logo filmando, me escondo atrás de uma bananeira, observo, pra que ela não me perceba e não mude seu jeito de ser".
O filme evita o didatismo, a explicação, o elogio, a narração convencional, mérito do realizador, que opta por um filme sensorial e emotivo, onde o diretor dialoga com sua própria obra, e que nos dá, como ao gosto de Mauro, uma cachoeira incessante de imagens. Enumerar seus filmes é tarefa impossível, tal a sua quantidade e diversidade. Mas impossível não destacar e privilegiar as sequências antológicas de seus longas de ficção O Descobrimento do Brasil, Thesouro Perdido, Canto da Saudade, Ganga Bruta, Brasa Dormida, Argila, além do documentário Carro de Bois (versão longa). Dos filmes sobre educação rural, técnicas agrícolas e sanitárias, divulgação cientifica, feitas para o INCE - Instituto Nacional do Cinema Educativo onde, desde 1936, foi parceiro, companheiro de trabalho e amigo, de outro pioneiro, Edgar Roquette-Pinto.
Ao longo da conversa gravada, Mauro comenta sobre a importância de Roquette, do fotógrafo Edgar Brasil e tambem de Adhemar Gonzaga, da Cinédia, para a produçâo de seu cinema.
Da cultuada série Brasilianas, iniciada em 1945, onde Mauro fez pequenos filmes sobre cantigas, aboios e cantos de trabalho, incluindo canções populares recolhidas por Villa-Lobos e Mário de Andrade, Casinha Pequenina é um dos exemplos mostrados no documentário.
Impossível resistir ao encanto e sensibilidade com que filmou alguns de seus clássicos, os belos, poéticos e inventivos curtas Carro de Bois, Meus Oito Anos, João de Barro, A Velha a Fiar, este um dos seus últimos trabalhos, já de 1964.
Tudo está lá, no filme tributo de André Di Mauro, sobrinho neto, incansável no rastro de Humberto Mauro, de sua obra autoral, de produção quase artesansal, na arte de filmar o regional, suas histórias, cenários, imagens e cantos, a tentativa de tradução e representação do Brasil.
São muitas as cenas memoráveis registradas, das planícies, matas e montanhas, correntezas, riachos, rodas d'água a girar, mulheres no pilão, trabalhadores rurais e seus movimentos com enxadas ao pôr do sol, arados e carros de bois, festas populares e muitos outros poemas visuais. Uma delas emociona de forma exemplar, a do velho carro de bois, vencido pelo tempo de uso e trabalho, quebrado, enferrujado, agonizando, jogado na paisagem, já cercado de mato, com o vento retorcendo os ferros de suas rodas, que emitem seus últimos e doídos lamentos em vida, para Mauro, "seu canto final para a eternidade".
A frase emblemática de Mauro, " ‐- Cinema é Cachoeira", repercutida tantas vezes, continua com seu eterno enigma, suas várias interpretações, de críticos e admiradores, o Rosebud de Citizen Kane do nosso cinema.
Humberto Mauro está para o Brasil como o importante cinema antropológico do norte-americano Robert Flaherty e o cinema educacional inglês de John Grierson, pioneiros dos anos 1920 e 1930. Para alguns criticos, com o nível de pintura de um Roberto Rosselini no cinema, Debret e Portinari nas artes plásticas, força, estética e significados que se equivalem.
Ao final, vale lembrar A Velha a Fiar, um precursor e magistral clip de imagem da cantiga folclórica, que canta e mostra a velha no tear, a mosca, a aranha, o rato, o gato, o cachorro, o fogo, a água..... e a velha a fiar. Filme que é também a reflexão sobre a vida que passa, sobre o envelhecimento. E a metáfora de seu proprio cinema, o cinema a fiar, de Humberto Mauro.

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