O Bar Luva Dourada


O BAR LUVA DOURADA, TREVAS E LUZ

O Bar Luva Dourada é o novo filme do diretor turco alemão Fatih Akim. Que nos trouxe recentemente o filme Em Pedaços, em cartaz em 2018, drama dilacerante sobre a presença do neonazismo e a onda de atentados raciais que ocorrem na Europa em tempos atuais.
Em 2004, com um tema sobre os conflitos vividos por filhos de imigrantes turcos na Alemanha, outra produção sua, Contra à Parede, deu a Akim o prêmio Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlin.
O Bar Luva Dourada é sua nova obra, também de forte impacto, que radicaliza estéticamente a tendência atual do hiper-realismo do cinema europeu.
É baseado na história real do sangrento serial killer Fritz Honka, com deformação física e mental, alcoólatra, matador e esquartejador de mulheres, em Hamburgo, nos anos 1970. Frequentador de um bar, soturno e decadente, lá capturava suas presas, prostitutas ou não, solitárias, desvalidas e já vencidas pela vida, seduzindo-as e conduzindo-as, pela oferta de mais bebida, para seu nauseante e imundo apartamento, num apertado sótão, onde também mantinha parte dos corpos de suas vítimas. Lá, ressaltam nas paredes sujas, várias fotos de revistas com mulheres nuas, coladas e pregadas ao lado de puerís bonecas de pano.
A obra, na construção artística e técnica de sua trama, em suas camadas e entranhas, nos revela inegáveis virtude e qualidade do bom cinema. Roteiro, direção, uso da câmera, fotografia, make up, décor de ambientação noir, atuações, construção de personagens, trilha musical melancólica, todos os elementos funcionam para a realização de um filme que impressiona, faz doer, sentir e pensar.
As deformidades físicas e morais de Honka, na impressionante recriação do ator Jonas Dassler, são também as de uma Alemanha ainda com chagas abertas do pós-guerra, a expressão do doentio. Macabros, escuros, sombrios, o filme, a história, o bar, o serial killer.
Filme pra ver com a firmeza dos olhos abertos.
Narrar o humano monstruoso e sua ameaça está no dna do cinema alemão. Como Dr. Mabuse e M, o Vampiro de Dusseldorf, ambos de Fritz Lang. Nosferatu, Dr. Caligari, Fausto e Mephisto são outras assustadoras figuras do expressionismo alemão, nas imagens distorcidas e suas fantasias de desejo, medo e morte, que marcaram intensamente nas telas do início séc. XX. Cinema que faz a arquitetura da representação do mal, do mal estar da cultura e da civilização, desde Freud.
Enquanto crônica sobre a violência masculina, perversa e sem limites contra a mulher, o filme de Faith Akim sobrevive e escapa do recorte machista a que se arrisca um artista no tratamento de um tema tão sensível ao olhar feminino. Ao narrar episódios cruéis onde há ‐- e houve, na realidade ‐- a vitimização de mulheres, o filme não reproduz (no sentido de Bourdieu, da reprodução e duplicação ideológica) o perfil misógino do criminoso. Não configura o vilão sedutor, não cultua, não estetiza, não glamuriza o assassino e sua compulsão pela violência. Personagem e sua história não transitam no plano de um imaginário ficcional construído mas sim no de uma hiper-realidade que, mesmo surpreendente e descomunal, aparece como vivida, conhecida. Como se nos mostrada por uma câmera fixa, documental, invisível, testemunhal, fria e imparcial. E que hesita, através de enquadramentos encobertos ou cortes precisos, em nos revelar cenas explícitas da barbárie. Ou seja, não há sangue espirando na tela, apelo tão banalizado hoje por filmes das diversas franquias do terror hollywodiano juvenil que assolam o mercado blockbuster das salas de cinema.
No bar em Hamburgo e no sótão em seus arredores, antros de crimes e pecados, sórdidos e repugnantes, uma narrativa sobre o absoluto incômodo e o repulsivo, sufocante e opressor, mas que também acende esperança.
Há no filme, entre desalentados e excluídos, feios, deformados, sujos e mórbidos, uma linda menina adolescente, de nome Petra, objeto do desejo sádico mais lancinante do assassino, e que surge em sua oposição ao perverso, num vôo de inocência e liberdade, que lembra, em sua imagem de humanidade e risco, a personagem trapezista de Wim Wenders, em Asas do Desejo.
A força de Petra é a do seu contraponto, seu não pertencimento ao Luva Dourada, sua existência se dá no entre lugar, da rua e da fantasia de Honka, sua identidade se faz na sua excessão ao mundo da perversão.
Na cena final, o hiper-realismo dá enfim lugar à magia do cinema sonhado, a do encanto, com que o diretor/artista, com sua mão e seu olhar, nos oferece. Com a câmera, estática, na última noite do criminoso, numa esquina, na espera e na espreita de um desenlace. E é onde se dá, num eloquente silêncio, a criação do ponto de fuga, e quando a linguagem do distanciamento é então quebrada. E cria-se a poesia. A saída do drama, a sobrevivência, é escapar do próprio filme, vir em direção à câmera e aos nossos olhos, crescer diante dela, fazer a ultrapassagem, sair do seu campo. Para sempre.
Fatih Akim é um cineasta complexo e singular.
Que perscruta temas dolorosos e trágicos, da violência e do horror, nas suas diversas formas e sombras, que afligem, assustam, perturbam, emocionam. Diretor e filme, que vão nas feridas. Entre trevas e luz.

Comentários

Postagens mais visitadas