Morte em Veneza


MORTE EM VENEZA, VISCONTI E O ARTISTA EM RECONSTRUÇÃO.

Revisitar obras eternas do cinema mundial é tarefa a ser cumprida pelo crítico, sempre que se imponha a necessidade de uma reinterpretação conceitual de um filme, a reafirmação de sua indiscutível qualidade artística e seu valor como representação estética, suas conexões com os estados da arte, da alma, da paixão, da humanidade, de tempo e lugar.
Morte em Veneza (1971), filme de um dos grandes mestres do cinema italiano, Luchino Visconti, adaptação e releitura da obra homônima de Thomas Mann, consta em uma relação, publicada recentemente por um site de cinema, como um dos filmes mais depressivos e com personagens autodestrutivos, de todos os tempos. Também incluídos na lista, O Homem que Amava as Mulheres (François Truffaut), O Show Deve Continuar (Bob Fosse), Touro Indomável (Martin Scorsese), Cisne Negro (Darren Aronofsky), entre outros. Esses enquadramentos e definições são, no mínimo, controversos.
Classificar uma obra de arte e dar-lhe um sentido único e definitivo, traz sempre o risco de fechar seu campo simbólico, aprisionando seus significados, negando-lhe o estatuto de obra incessante, múltipla e aberta aos olhos, corações e mentes do público e da crítica.
Em especial, sobre o clássico Morte em Veneza, um outro olhar se faz necessário, tanto sobre a compreensão do filme como de seu protagonista, o compositor erudito Gustave Aschembach (que no original de Mann, era um escritor). A interpretação inspirada do ator Dirk Bogarde, compõe, com delicada filigrana dramática, não um personagem auto destrutivo e depressivo mas, ao contrário, um homem que, em crise pessoal e artística, busca o mergulho e o reencontro consigo mesmo, da excitação, da inquietude, da paixão, da redenção.
Sua morte física anunciada não é a do seu espírito. Numa atmosfera melancólica, sob acordes da 5a. Sinfonia de Mahler, nos seus últimos dias, vividos no Grand Hôtel de Bains, no Lido de Veneza, o artista em seu terno branco, tenta um novo despertar, movido pelo alcance da representação e da perfeição da beleza, por mais que esta apareça como inatingível. O jovem Tadzio, papel do ator sueco Björn Andresen, na imagem de um anjo andrógino, encarna sua perseguição pelo ideal do puro e do belo, a juventude como lugar de renascimento. A admiração exacerbada do artista o transtorna, na mistura de idealização e desejo, percebendo o jovem adolescente como a maior expressão de beleza já vista, como um misto de obra da natureza e da produção artística. O espanto, a beleza perfeita, a busca do inacessível, a ameaça da morte, constituem os elementos dramáticos cruciais de uma obsessão que surpreende, desconcerta e dilacera o sentimento do artista.
No elenco, no entorno dessa relação e também como uma espécie de interdito entre os dois entes principais da trama, a presença magnética de duas mulheres, as divas Silvana Mangano e Marisa Berenson, em sofisticados figurinos e admiráveis cenários junto à praia do mar Adriático.
Morte em Veneza, um filme intenso, entre o sombrio e o luminoso, de atmosferas, silêncios e contemplação, sobre o fascínio e a fascinação. A deterioração de Veneza na epidemia do cólera, como cenário do drama, traduz o símbolo da decadência do modo de ser de uma aristocracia cercada de luxo, a metáfora do fim do ciclo da vida, do encanto, da criação.
Na assinatura de Visconti, uma experiência sensível, poética e complexa, que não é a da auto destruição nem da depressão, mas a tentativa do artista na procura comovente de sua reconstrução, da sua capacidade na arte e na existência, mesmo que tardia.

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