Lumière!


OS LUMIÈRE, A AVENTURA DO CINEMA

Lyon, 1895. A saída dos operários da fábrica e a chegada do trem na estação. Dois planos de 50 segundos  que estão na origem da aventura cinematográfica. Projetados originalmente, numa seleção de 10 curtas, a um público pagante no Grand Café em Paris, no dia 28 de dezembro. A sequência da estação, já se sabe, assustou a platéia, que temeu que o trem, filmado no eixo da câmera, atravessasse a tela. As pessoas não tinham ainda o domínio do código do registro da imagem em movimento. Nos dois planos, personagens anônimos se movem pela primeira vez dentro de um enquadramento fixo, moldura da tela viva da anunciada photographie animée.
Estas e outras preciosidades, num total de 114 filmes captados pelo cinematógrafo inventado pelos irmãos Louis e Auguste Lumière, estão reunidas, remasterizadas em 4k e comentadas no filme Lumière! A Aventura Começa (Lumière!). Presente de Natal vindo da França, embalado pelo editor Thierry Frémoux, diretor do Instituto Lumière e do Festival de Cinema de Cannes.
Declaração de amor ao cinema é o slogan impresso no cartaz do filme, que faz jus ao que é exibido aos nossos olhos. A plataforma da estação e a porta da fábrica são duas locações emblemáticas de um cotidiano de fins do século XIX na França, que alçaram prestígio e status de cenários precursores da fantasia e da magia do invento do cinema. Menos famosas do que A Saída dos Operários da Fábrica Lumière e A Chegada do Trem a La Ciotat são algumas outras sequências encenadas por amigos e familiares em Lyon, entre elas as divertidas O Almoço do Bebê e O Jardineiro Regado. Percorremos também outros espaços e registros, que vão do universo público ao privado da vida em Paris e em outras cidades francesas. Filmes rodados em outros países fazem parte também da compilação, mostrando aspectos do mundo na virada do século, como cenas do urbanismo moderno nos EUA e Espanha, e até exotismos em outras regiões, como Vietname e Turquia. Entre 1895 e 1905, mais de mil filmes foram feitos nos dez anos da aventura Lumière.
A narração crítica e apaixonada de Frémoux, adjetivada demais em alguns momentos, associada à música de Camille Saints-Saëns, nos conduz pela técnica e arte cinematográficas que capturam cenas da casa e da rua, da família e do trabalho, da infância, do esporte, do entretenimento e rituais os mais diversos, documentando cultura e comportamento, entre o espontâneo e o dramatizado, numa variedade de tons, do lírico ao cômico, do jornalístico ao etnográfico. Ressalta também nos filmes selecionados o rigor estético na composição dos quadros, no posicionamento do olhar, na cadência dos travellings, na iluminação natural, na harmonia buscada no que se apresenta e se movimenta dentro e na profundidade do campo. Com planos e composições cênicas referenciais, identificamos quadros à semelhança de outros que seriam compostos por gênios que vieram depois, como Eizenstein, Ford, Ozu, Kurosawa e Visconti.
Na imagem escolhida para encerrar o longa, crianças de uma tribo, em algum lugar da Ásia, correm em direção à câmera, que filma se afastando lentamente, acoplada em um veículo. No plano frontal das crianças correndo, vai se destacando uma menina, com olhos curiosos e sorriso de esplendor, no seu encantamento pela descoberta do objeto estranho, a câmera que filma. A beleza da imagem, singela no seu flagrante artístico e poético, emociona como tradução de uma arte em movimento que inaugura a descoberta e a revelação do outro, em sua plenitude de natureza e cultura. Lumiere! que nos mostra o começo, o instante em que a realidade vira espetáculo e trama em movimento, é um brinde de final de ano. O cinema já estava ali por inteiro, antes mesmo de ser nomeado como tal.

Comentários

  1. Carlinhos, suas críticas são sempre maravilhosos! Obrigada por nos presentear com uma escrita tão bacana, sucinta e clara.!

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  2. Aos navegantes que aportarem por aqui, seguindo a luz dos Lumière:
    Apesar da citação errada do meu nome no comentário aí em cima, my name is Bond. James Bond!
    Ou seja, Dermeval Netto.

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