Lucky
HARRY DEAN STANTON E O
DESERTO
Rosto marcado com muitos sulcos, seco e triste, olhos
fixos e profundos como se estivessem sempre à mirar algum lugar fora e além da cena, talvez na memória, talvez na imaginação. Harry Dean Stanton, com sua cara de bruxo, foi
um character actor, sempre chamado a
fazer papéis dentro de uma galeria de tipos, incomuns e excêntricos. Seus
personagens, quase sempre desvalidos, marcados por alguma fatalidade ou
desesperança, sempre obstinados, determinados a ir, a seguir vivendo. Ator
econômico nos recursos dramáticos e farto na expressão. Suas atuações no cinema
foram quase todas como coadjuvante, com poucos solos, nos seus quase setenta
filmes. Mas seu brilho foi intenso, sua presença sempre marcante, ator pra lembrar
e não esquecer.
Stanton nos deixou em setembro, aos 91 anos de idade,
nos dando como presente seu ultimo trabalho, arrebatador, como protagonista do
drama Lucky, em cartaz nos cinemas. No papel título, lá está ele a caminhar pelo deserto, na aridez física de areia
e cactos, ambiente para o seu personagem de alma árida, no final da vida, junto
a figuras bizarras que, à sua volta, lhe dedicam estranhas histórias. Entre elas, a do vizinho Howard, infeliz, entregando-se à bebida, por ter sido abandonado pela sua fiel companheira de muitos anos, uma tartaruga
de nome presidente Roosevelt. Neste
papel, como um bônus, o diretor David Lynch atuando, num personagem também
excêntrico. Lembrar que Harry Dean (como o chamava Lynch) foi seu ator em
episódios da série Twin Peaks e nos filmes Coração Selvagem e Império dos Sonhos. Também com participação no filme o ator Tom Skerrit, os dois contracenam novamente, repetindo o que fizeram em Alien, o Oitavo Passageiro, de Ridley
Scott, 1979. O ambiente inóspito, mas fraterno, do Texas de Lucky, com direito à músicas el mariachi,
nos remete ao clássico Paris, Texas,
de Wim Wenders, 1984. Onde Stanton nos impactou como o andarilho Travis, maltrapilho e amnésico, vagando pelo Mojave
na busca de encontrar um pedaço de terra e que, ao final, vai, com seu pequeno filho,
atrás do reencontro com a ex-esposa, vivida pela fulgurante Nastassja Kinski,
que trabalha como girl em um peep show em Los Angeles. Neste, que
ganhou a palma de ouro de melhor filme em Cannes, em papel solo, Stanton faz do
deserto sua paisagem, seu caráter e seu estado de espírito, ao som cortante da
guitarra de Ry Cooder. Travis é, sem duvida, com sua tragédia pessoal, em contraponto à América de prosperidade da era
Reagan, uma das criações de Stanton já inseridas na história e galeria dos grandes personagens do cinema em todos os tempos. Também em 1984 o vimos como protagonista no cult Repo Man, de Alex Cox, em mais um
estranho personagem, um sucateiro punk de carros, às voltas com conflitos com
agentes do governo americano.
Neste seu último Lucky,
dirigido por John Carrol Lynch, estamos novamente diante de um ator que nos
comove, já em plena senilidade, com seu rosto arqueológico, encarnando um personagem,
talvez com alguns traços biográficos, que transita nos territórios desérticos
da solidão, da desilusão, da desesperança e do medo da morte. Harry Dean Stanton não chegou a ver o filme pronto, um
tributo ao seu legado. Nele, onde seu nome significa homem de sorte, a vida é reafirmada com a força e a pujança dos cactos gigantes que
povoam e sobrevivem no cenário escaldante do deserto. Entre eles, a vida vai seguindo aos poucos,
tanto a do velho Lucky como a do presidente Roosevelt.
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