Parasita

PARASITA, HUMOR ÁCIDO E CRÍTICA SOCIAL


Parasita, filme de Bong Joon-ho (Coreia do Sul, 2019), foi o vencedor da Palma de Ouro de Cannes de 2019.
Enredo instigante, cinema sul-coreano de ótimo padrão de realização, na linha de outros filmes, desde o início dos anos 2000 produzidos naquele país.
A trama sobre o antagonismo de classes sociais, até a primeira hora do filme, é primorosa, nas caracterizações de personagens, ambientes e diálogos afiados. Daí para o final, o rico humor ácido e inteligente dá lugar ao estilo mais próximo à chanchada, que "ultrapassa o limite", para usar o jargão do Sr. Park, o rico patrão, no modo como se refere às ações e gestos de aproximação de seus empregados. Estes, identificados pela diferença, na sua postura, comportamento e no seu próprio cheiro.
Um filme fábula sobre a pirâmide social, o desejo de escalar, o cinismo, a moral, a ética e os fetiches de duas diferentes e contrastadas famílias, localizadas na base e no topo. As famílias, a pobre (do Sr. Kim) e a rica (do Sr. Park), que habitam, uma delas um infecto, sujo, escuro e estreito porão, abaixo do nível da rua, de bairro de periferia de Seul, a outra uma suntuosa, estilosa e imponente mansão, de jardins idílicos, repleta de recursos de tecnologia e conforto. As duas vão ter seus caminhos cruzados e superpostos, na diferenciação de papeis de patrões e empregados, ao longo de uma acidentada, imprevisível e até surpreendente narrativa. Sobre como uma família sul-coreana, abaixo do nível da miséria, se infiltra numa família rica, abastada.
O possível maniqueísmo de marcar a primeira delas (do Sr. Kim) pela malandragem e esperteza e a segunda (do Sr. Park) pela ingenuidade e futilidade, escapa do caricato e faz parte do jogo de interseções culturais e conflitos sociais que o filme vai construir e desenvolver. Ambas, familias nucleares, constituídas de pai, mãe, filho e filha, como um reflexo ao inverso no espelho social.
Um filme brilhante e original, com sequências inventivas e bem elaboradas, truques, filigranas e boas investidas entre o humor ácido, o suspense e a crônica social, num final de roteiro com concessões à comédia acelerada de equívocos e confusões, dando entrada também à cenas de violência desmedida, uma das marcas constantes dos filmes sul-coreanos.
Este cinema, de estética refinada, costuma privilegiar em seus argumentos, o tema da vingança. Valor entranhado na cultura daquele país, há alguns estudos sobre isso. Assim, como nas obras do diretor Park Chan-Wook, Mr. Vingança (2002), Old Boy (2003), Lady Vingança (2005), A Criada (2016), também com Jee-Won Kim em seu O Gosto da Vingança (2006) e neste Parasita. 
A questão da vingança está sempre atravessada nos filmes, no centro ou nos entornos das histórias, seja no plano pessoal ou social, nas questões do indivíduo ou de classe, como acentuado em Parasita. Aqui, a discriminação de classes tem sua nomeação mais perfeita, quando Sr. Park identifica, classifica e deprecia seus empregados pelo cheiro, o cheiro dos pobres. Esta expressão, que define, demarca, separa e humilha, torna-se o mote que vai desencadear a agudez do conflito. Um cinema de forte densidade, conteúdo, linguagem aprimorada, que traz temas ligados aos dramas do conflito e da mobilidade social em seu país, e com o destaque para um necessário e imprecindível acerto de contas.
O sul-coreano Bong Joon-ho abandona em Parasita o gênero de terror de O Hospedeiro (2006), a ficção científica de O Expresso do Amanhã (2013), e a fábula ecológico-política Okja (2017), alguns de seus filmes anteriores. Opta pelo realismo social com tintas de sátira e comédia despudorada, metáforas, alegorias e outras artimanhas de linguagem para falar abertamente do conflito de classes.
Ao final, numa overdose de banhos e enchentes de chuva e sangue, com direito à imagens expressivas da mega inundação da parte baixa da cidade, habitat da família Kim. A luta de classes se consolida e se esgarça na escala de sempre. Onde o infortúnio sobra mesmo é para os anti-heróis do andar de baixo.
Feios, sujos e malvados perdem outra vez, trazendo aqui, no paralelo ao filme de Bong Joon-ho, a necessária citação da mais perfeita crônica do humor social ferino, feita pelo gênio italiano Ettore Scola (Feios, Sujos e Malvados / Itália, 1976) em uma de suas obras primas, um mestre e referência na composição precisa, criativa, envolvente e prosaica do universo dos desvalidos. Também o mestre Kurosawa vem à memória, com seu clássico Ralé (Japão, 1957 - baseado em Máximo Gorki), ambientado em um cortiço, no período Edo japonês, meados do século XIX, na sua crônica impiedosa e amarga sobre os miseráveis, maltrapilhos e desafortunados.
Parasita é, sem dúvida, um meio parente, estilizado e hiper atualizado, no humor sombrio e no tom dramático, entre o amargo e o satírico, de Feios, Sujos e Malvados e o abismo social de Ralé.
Com um exímio jogo de aparências e realidades, o coreano Parasita traz o grito contemporâneo da crítica à farsa do neoliberalismo e seus desequilíbrios e desigualdades, instalados e espalhados no mundo capitalista atual. O significado mais profundo do filme, revela-se, talvez, na pergunta do jovem (pobre) Kim, à jovem (rica) Da-hie, diante de uma festa oferecida em sua mansão: " -- Todos parecem tão maravilhosos! Você acha que eu me encaixo nisso?"




Comentários

Postagens mais visitadas