Cinema do Invisível

CINEMA DO INVISÍVEL, NO FEMININO


Assistir ao filme A Vida Invisível (Karim Aïnouz, 2018), é sair dele tomado de rara comoção. Experiência em ver cinema, olhar técnico, menos história e mais linguagem, mirar construções e composições, identificar referências, desvelar camadas... truques e armas do crítico são necessários diante do que um bom filme permite e oferece. Por vezes, é pouco.
Difícil permanecer no conforto da recepção estética e escapar de uma narrativa avassaladora, do sensível, do coração, que invade e fulmina os olhos e a alma, arrebata.
A Vida Invisível trespassa com requinte, arte e delicadeza, o universo duro da amargura, do desencanto, do desencontro, da desesperança, da vida invisível, que foge, se esconde, se desconstrói, se esvai, se apaga. Guida e Eurídice (pelas atrizes Carol Duarte e Julia Stockler, de grande força de interpretação, intensas, impressionantes), duas jovens irmãs, almas gêmeas, que se dilaceram ao se perder, separadas pelos destinos que escolhem, e passam a se buscar de novo e a se relacionar no sonho torturado e no imaginário, de modo incessante, como projeto e motor maior ao longo de décadas de suas vidas. O filme se autointitula de melodrama tropical, como a avisar que vai tratar de sentimentos, e na temperatura mais quente. No rastro dos mestres do gênero, de Douglas Sirk a Fassbinder. Sensualidade, calor intenso, sexo forçado, violações, entrega, suor, dor e lágrimas, em cada curva ou meandro. Um canto triste à identidade feminina, crônica amarga, sofrida, dos anos 40 e 50, sobre as normas sociais de família e do casamento na propriedade do corpo da mulher. Um filme sobre o essencial da humanidade, o amor e a fraternidade, e a sua falta. Cinema de poesia e aspereza, entre a luz, cores contrastadas e a sombra. De sentir, admirar, respirar fundo, e se emocionar. A apoteose final, visceral, com Fernanda Montenegro, nos seus 90 anos, é mais do que bônus ou recompensa, o arremate que surpreende, conjuga o épico e a ternura.
Adaptação do livro "A Vida invisível de Eurídice Gusmão" (Martha Batalha, 2016). Vencedor do Prêmio Un Certain Régard, Cannes, 2019. Escolhido para representar o Brasil no Oscar de Filme Estrangeiro 2020.
De Karim, os já conhecidos Madame Satã (2002), O Céu de Sueli (2006), Viajo porque preciso, volto porque te amo (2010), O abismo prateado (2011) e Praia do Futuro (2014), anteriores a esta, a sua obra mais madura.
Vidas invisíveis, tão longe, tão perto, no desvão, na travessia, na vidraça embaçada, ou no abismo interior, onde o tempo passa, a esperança passa, a vida passa, em mais um filme que se conjuga no ardor e no compasso do feminino.

Comentários

  1. Me fez pensar em Uma Vida em Segredo, livro de Autran Dourado -- que aliás também virou filme com direção de Suzana Amaral (não assisti, não sei se é bom).

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