O Irlandês, de Volta à Máfia

O Irlandês, De Volta à Máfia.


O Irlandês, novo filme de Martin Scorsese, produção Netflix (210 min. / 2019), baseado no livro de não ficção de Charles Brandt, "Ouvi dizer que você pinta casas." (2004). No titulo do livro, o modo cifrado de contratar um assassino de aluguel, de cujas vitimas o sangue escorre pela parede.
Filme com sessões em número restrito em poucas salas de cinema, por pouco tempo, destinado à exibição principal pela plataforma de streaming do canal produtor.

O encontro entre Pacino e De Niro faz de O Irlandês um filme essencialmente dos dois atores. Em confronto, dois personagens intensos, dramáticos, trágicos e melancólicos, com seus intérpretes em seus diferentes e opostos estilos de representar. O primeiro, no melhor de sua veia cômica, solene e over, o segundo num expressivo tom econômico, num quase minimalismo.
A narração da história em flashbacks pelo protagonista, o já decadente, envelhecido e quase inválido Frank Sheeran, o irlandês (De Niro), veterano da segunda guerra e motorista de caminhão de frigorífico, que se torna um dos principais matadores a servico da máfia, registra um tom confessional e penitente, consumido nas memórias do passado, como a pedir perdão pelos crimes e pecados cometidos, que desfilam durante o filme. Ali, os fundamentos cristãos de Scorsese, em mais uma sequência de sua brilhante filmografia sobre as sagas do poder da máfia, desde Caminhos Perigosos (1973), Os Bons Companheiros (1990), Cassino (1995), Gangs de Nova York (2002), Os Infiltrados (2006), O Lobo de Wall Street (2013).
O irlandês Sheeran, de De Niro, o poderoso Jimmy Hoffa, de Pacino ‐- presidente do mais influente sindicato dos EUA, o dos caminhoneiros ‐- e os chefões da máfia, de Joe Pesci e Harvey Keitel, em solos, duos ou trios, são um espetáculo em sua composição, precioso, instigante, emocionante, lições que definem o ato de representar. Pesci, o mais velho deles, já aposentado, que não aceitou inicialmente o convite para o filme, e foi convencido com a promessa de que não se moveria muito nas cenas, constrói o personagem do chefão Bufalino, protetor do irlandês, que, mesmo coadjuvante, imprime uma força de expressão, presença e carisma arrebatadores.
Com o auxilio luxuoso de makeups de envelhecimento e efeitos de computação para o rejuvenescimento digital, o filme faz uso de tecnologias que não ocupam exibicionismo próprio, mas somam a favor da densa e alternante narrativa, nas diversas linhas do tempo que se cruzam na história narrada. Entre tramas, crimes e trapaças, jantares e automóveis de luxo, acordos, traições, tribunais e julgamentos, também um background histórico e documental entre os Kennedys, Johnson, Nixon, FBI, a Cuba de Castro, e outros dados de realidade, dos anos 50, 60 e 70, no entorno da epopéia do gangsterismo clássico.
No contraponto principal, entre o radiante Hoffa e o depressivo Sheeran, nos limites estreitos entre amizade, irmandade, lealdade, confiança, família e negócio, a força e a fragilidade dos dois, a cada cena, do início ao desfecho, se constróem num painel de violência, poder, ambição, culpa, arrogância, desfaçatez.
No modo operístico em que rege Scorsese, em planos de câmera que insistem em ir e vir, descrever, contemplar, evocar, lá estão eles, no mundo dos homens, mafiosos e gangsters a ajustar contas, italianos, americanos, judeus e irlandeses, duros, brutos, secos, debochados, vaidosos, gananciosos, amorosos, cativantes, canalhas. Onde a história passa, a fantasia passa, a melancolia passa, a dor passa, o tempo passa, a vida passa, o filme passa.
Num tão visitado, já conhecido e surrado tema, importa sempre a nova leitura, o novo modo de narrar. Mais uma vez, em mais um filme de máfia, onde parece refazer o mesmo filme, surpreende, inventa e encanta em suas escolhas narrativas, o mestre, essencial em seu olhar e sua construção cinematográfica, Martin Scorsese.

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