Vision

VISION, NATUREZA E HUMANIDADE


Vision, uma coprodução Japão / França (2018), é o novo filme de Naomi Kawase, diretora de um cinema da delicadeza, que já nos brindou, entre outros, com Shara (2003), O Segredo das Águas (2014), Sabor da Vida (2015) e Esplendor (2017). Seu cinema é de estilo e entrega muito pessoal, de imersão e contemplação na natureza e nas tradições culturais do Japão, projetados na memória e nos dias atuais. Seus personagens costumam ser intensos, generosos, movidos à dor, solidão, paixão, saberes ancestrais e força espiritual.
Vision é um belo filme, sensível homenagem às montanhas e à floresta, em sua grandiosidade, encantamento, segredos, magia.
A história se desenvolve na Floresta Nara, no Japão, e nos seus arredores, onde fica a casa do personagem principal, um caçador, mas cuja ocupação, dita por ele mesmo, é "cuidar das montanhas". A floresta é o centro do filme, o seu ao redor e o seu interior, densa e misteriosa. Os planos de imagens alternam o monumental de verdes em tomadas aéreas, e muitas imagens subjetivas, por dentro da mata, com incidência de luzes do sol modelando formas e cores, num olhar no estilo impressionista. Muita chuva também fornecendo possibilidades de combinação com os raios de luz, criando imagens estonteantes. Filme lento, em ritmo de certa monotonia, repetitivo em vários momentos, de muitos silêncios, com personagens com poucas falas, curtas, e muitos olhares de um para outro. Olhos e olhares da atriz francesa (Juliette Binoche) e do ator japonês (Masatoshi Nagase), são a marca e a expressão principal dos protagonistas. Jeanne, uma jornalista francesa, visitante/turista, em jornada em busca de ervas medicinais, e Satoshi, um japonês nativo, os dois com difícil interação, no uso de um inglês básico, titubeante, na tentativa de conseguir a comunicação direta entre si. O que revela um não dominar, não conhecer e não penetrar o idioma e a própria cultura do outro.
Filme que aborda explícitamente a diferença entre os mundos do pensamento e do sentimento, linguagem verbal x sentidos. De um lado, a história sobre as ervas, que brotam e nascem num evento há cada mil anos naquela floresta, buscadas pela francesa para curar a dor humana e a angústia, na procura de algo de fora, externo a ela. De outro, o japonês, contido, a dizer que a felicidade ou está no coração ou não está. A floresta, onde tudo nasce, morre, se renova, se auto destrói e reconstrói, é metáfora da vida.
Com uma provável homenagem a Derzu Uzala (1975), de Akira Kurosawa, nas cenas iniciais da mata, e em algumas outras que intercalam a narrativa central, mostrando um ou outro caçador mirando e atirando em sua caça, cenas que remetem às imagens da floresta da fronteira entre a Rússia e a China, do clássico do mestre Kurosawa.
Filme que mantém mistério, sentimento, poesia. Que busca, talvez, se manter impenetrável, tanto quanto a floresta.
Há ainda outros dois personagens no entorno da relação dos dois protagonistas entre si e com a floresta, para a construção de um sistema de representação nas suas quatro pontas.
Uma senhora japonesa (Mari Natsuki), idosa, cega, que vê com o coração, com as mãos e com o dominio da cultura milenar, que conhece o poder das ervas, e é o elo forte do humano com a natureza, significando a sabedoria da floresta, que é a sua morada. É também um pouco da vida que se desenvolveu e vai se extinguir. Esse, um tema constante no filme. Uma sequência primorosa é a de seu bailado na floresta durante uma tempestade de vento e chuva, com a câmera dançando junto com ela, em seu corpo frágil, com planos de contra-plongée das enormes árvores dos cedros, que também balançam, se curvam, dançam, num grande balé de corpo, vento e chuva, força e esplendor da natureza.
E também um jovem japonês (Takanori Iwata) que aparece por ali, ferido, intui-se que atingido por um tiro de algum caçador, para ser curado. Sua chegada à região e à casa coincide com o desaparecimento da personagem mais velha, que não retorna mais da floresta, no contraponto com a maturidade, um aprendiz da floresta, a indicar a sua renovação.
Os quatro personagens compõem lados diversos e complementares sobre a vida, o equilibrio, entrelaçados pelo tempo da natureza, que se constrói e desconstrói.
Naomi Kawase é diretora autoral, faz um cinema de rigor e conceitos, que se traduz em imagem, linguagem, ritmo próprio, sensações. Vision e sua floresta, seguem nessa trilha.
A personagem de Juliette, a visitante, numa composição de emoção e deslumbramento, não tem o domínio no filme, como normalmente a atriz nos acostumou a ver em suas inúmeras atuações anteriores. Ela se dissolve junto a tantos elementos fortes ao seu redor. Mesmo que, de certa forma, tudo em volta que nos é mostrado, possa estar sendo visto, olhado, percebido, por ela.
As fortes figuras femininas sempre presentes na obra de Naomi, estão aqui, diluídas, no conjunto dos elementos do filme, na margem e no seio da natureza mãe.
São o melhor da trama, a floresta, suas sonoridades, pregnâncias, claridades e sombras, sua pujança e a de seus personagens locais. Neles, o principal poder de sedução e algumas lições de sabedoria, tradição, sentimento, espiritualidade e humanidade.

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