Filhas do Sol

FILHAS DO SOL, O FEMININO NA GUERRA


Algumas poucas reportagens foram publicadas em jornais brasileiros, nos últimos anos, sobre o exército de mulheres curdas em combate contra a opressão do sequestro e da escravização de mulheres e crianças nos conflitos no Iraque e na Síria, práticas brutais das tropas do exército do ISIS. Mais de 7.000 mulheres, desde 2012, pertencentes às brigadas femininas do YPJ, enfrentam a luta pela independência do Curdistão, região sudoeste da Turquia, e pela recuperação de prisioneiras curdas dos terroristas do Estado Islâmico.
Filhas do Sol (Les Filles du Soleil, França, 2018), obra da diretora francesa Eva Husson, faz um mergulho nessa temática, com uma narrativa de guerra como cenário do drama de mulheres, suas dores, suas perdas, horrores e sofrimento, tragédias que atravessam de forma visceral suas vidas.
Cenas de violento confito em primeiro plano, protagonismo de mulheres, tendo como personagens centrais a jovem líder guerreira Bahar, interpretada pela carismática e bela iraniana Golshifteh Farahani (Paterson, À Procura de Elly, Dois Amigos) e a fotojornalista Mathilde, na atuação densa da atriz e diretora Emmanuelle Bercot (O Professor Substituto, Meu Rei, Ela Vai, Polissia). As duas personagens têm suas vidas cruzadas e marcadas no ambiente de explosões, tensão, desgraça e morte, na saga de uma brigada dessas mulheres, em ofensiva, entre ataques, bombas, minas e tiros, na busca de resgatar uma cidade ao norte do Curdistão. Junto à luta na guerra pela libertação e a do enfrentamento ao machismo selvagem, extremista, misógino e escravagista do violento ISIS, também a busca desesperada e pessoal de uma mãe, a comandante Bahar, em busca do salvamento de seu filho, menino prisioneiro do inimigo, junto à dezenas de outras crianças.
Cinema de guerra e violência e seu imaginário beligerante e cruel têm o dna masculino, pela presença dominante de homens e na representação de seus símbolos de virilidade. Tradição que vem sendo quebrada por algumas raras diretoras, como Kathryn Bigelow, em filmes como Guerra ao Terror (2008) e A Hora Mais Escura (2012). Outro exemplo nessa recente nova infexão autoral, de diretoras que adentram o universo recorrente da violência do masculino, é Lynne Ramsay, realizadora do sensível Você Nunca Esteve Realmente Aqui (2017), tendo antes assinado Precisamos Falar Sobre Kevin (2011).
Neste Filhas do Sol, as caóticas cenas de combate e pânico são entremeadas com memórias em flashbacks da vida de Bahar, tanto na fase pré-guerra no ambiente familiar, como depois, quando escravizada e seviciada pela brutalidade do inimigo. No episódio encenado de sua libertação e de outras mulheres e crianças, o filme presta homenagem aos movimentos reais de resistência e luta pela libertação e salvamento de escravas sexuais do Estado Islâmico. O jogo de tempos, entre presente e passado, também entra na caracterização da personagem da jornalista francesa Mathilde, no olhar retrospectivo, nas suas marcas e feridas, e nas falas conceituais sobre seu trabalho de testemunha como correspondente de guerra.
O filme de Eva Husson aposta no melodrama, em  um certo didatismo existencial, um simplismo no enredo, com algumas sequências com o intuito de reiterar o apelo a um sentimentalismo, com uma construção dramática reducionista em relação a conflitos mais profundos, os da realidade política das guerras. O filme busca a cumplicidade no terreno da emoção não tratando de aspectos históricos e políticos.
Mas tem inegável importância na valorização da luta armada, incessante e silenciada das mulheres curdas no cenário de devastação e barbárie da guerra étnica envolvendo o Curdistão.
A imposição do feminino, no sentimento, na visão de mundo e num espírito de revolução, na fragilidade e na força, nos vínculos de maternidade, amor e amizade, na crença no futuro, na determinação pela vida que tem que seguir.
A cena inicial, que é repetida quase ao final, do rosto de Bahar em close, de perfil, caída ao chão, sob a poeira de um bombardeio, encena a maquiagem dura, árida, de areia e terra, no contorno de uma expressão entre a dor, a tristeza e a disposição de fazer a vida vencer, ganhar da morte.
No filme, por várias vezes, o canto de guerra, em árabe, "La femme, la vie, la liberté".
Entre erros e méritos, um filme sobre a guerra, com semblante, olhar, esperança e sentimento de mulher.

Comentários

Postagens mais visitadas