Torre das Donzelas

TORRE DAS DONZELAS, MEMÓRIAS DO CÁRCERE NO FEMININO


Torre das Donzelas (de Suzanna Lira, 2018) é comovente, arrebatador. Cerca de 20 a 30 ex-presas políticas da ditadura militar, do presídio Tiradentes, em SP, no final dos anos 60, se reencontram em cenário que busca reconstituir suas celas e o ambiente daquela prisão, suas histórias coletivas. Filme de arquitetura de memórias, depoimentos e testemunhos entrecortados por flashes, delas jovens, em reconstrução cênica por atrizes, na reencenação de gestos, vislumbres, movimentos, detalhes, pedaços, mãos, bocas, olhos, pele, corpo, alma.
Somente Dilma Rousseff depõe em separado, com certa formalidade, em outro lugar, fazendo um certo guia, uma costura de roteiro e reflexão sobre essa memória, onde por vezes é tomada de emoção.
Nas cenas de abertura, várias mãos, de várias delas, desenham numa louza, com giz, a geografia espacial da torre, celas, grades, escadas, corredores. Filme por mulheres, com mulheres, sobre mulheres, dirigido por mulher, o feminino está em tudo no filme. Um universo muito pessoal e íntimo, mesmo coletivo. Um novo Memórias do Cárcere, político amoroso, feminino, visceral.
Uma das frases finais de Dilma é muito forte. "A pior coisa que a cadeia pode fazer com alguém é tirar-lhe o futuro. E por isso, eu não posso ser personagem de uma epopéia só. Tenho que viver a vida que me foi dada depois". Outro seu comentário, o da necessidade, como prisioneira, da luta incessante para controlar o espaço e o tempo em que está vivendo e resistindo. "Só assim pudemos vencê-los". Ainda Dilma, "Nós fugimos de uma visão penitente da cadeia".
Entre outras, lá estão, reunidas 50 anos depois, Dulce Maia, Iara Prado, Jessie Jane, Rose Nogueira, Elza Lobo, ilda Martins, Ana Mércia, Janice Teodoro, Guida Amaral, Rioco Kayano, Lucia Salvia, Lenira Martins, Nair Benedicto. Algumas das personagens estão in memoriam, o filme já está concluído há mais de 1 ano.
A diretora conseguiu, num documentário de reinvenção, conceber e realizar um filme leve, festivo, de afetos, os relatos são feitos com uma certa alegria e descontração, muito bom humor, pelo reencontro de antigas companheiras no set do filme, e talvez por elas terem sobrevivido e construído famílias e tudo o mais. Seguindo a linha de um psicodrama, não há um momento sequer depressivo ou sombrio, num filme de tão fortes e marcantes lembranças, histórias vividas, contadas. As memórias daquele lugar o identificam como uma espécie de casa, num imaginário do inferno ao paraíso, onde moraram e se uniram para sobreviver, o que tem o absoluto feminino na vivência e no relato.
São as referências de construção desse universo feminino de memórias, sentimentos e sofrimento, delas e entre elas, o principal da narrativa do filme. O que cria uma certa redoma, até de proteção, dessa memória. A torre, de memórias guardadas, é absolutamente delas. Há ali um mundo subjetivo no narrado, um universo delicado, impenetrável em suas camadas mais profundas do feminino, individual e coletivo.
Torre das Donzelas não é um filme diante do qual basta descrever sua história e relatar suas cenas principais. Além das palavras, há ali dores, mistérios, emoções, olhares, segredos, nuances, silêncios, significados mais densos, que estão além do dito e contado, reticências e fragmentos de uma carga feminina, talvez um pouco insondável, principalmente a um olhar masculino.
Difícil entrar por completo no filme, como se ainda houvesse cadeados e trancas a impedir simbólicamente a visitação.
Nos é dado, como dádiva, admirar a coragem, o percurso e a redenção dessas incríveis mulheres, guerreiras na torre e fora dela, donzelas nem tanto, perpassadas fortemente por uma vida de tantas marcas.
Uma delas, em certo momento do filme, lamenta e critica enfaticamente a demolição da prisão da torre, como "parte do projeto de apagamento da memória desses lugares, para que não se lembre mais deles". Em algumas falas, relatos da humilhação do deboche, do insulto, da tortura. Mas a maioria das histórias contadas nos fala dos elos de união, afeto e confiança que conseguiram construir, das táticas e truques para sobreviver, resistir, nas leituras de livros, nas discussões políticas, na obtenção de notícias do mundo real, o do exterior da prisão. O lema coletivo era "precisamos manter o moral diante do inimigo".
As músicas Vapor Barato, de Macalé, e Suíte do Pescador, de Caymmi, como temas musicais do filme, na trilha incidental e nas próprias vozes das personagens, completam, emocionam.
"Sim, eu estou tão cansado, mas não pra dizer, que eu tô indo embora, talvez eu volte, um dia eu volto ..e vou tomar aquele velho navio..."
"Minha jangada vai sair pro mar, vou trabalhar, meu bem querer, se deus quiser quando eu voltar do mar, um peixe bom eu vou trazer, meus companheiros também vão voltar, e a deus do céu vamos agradecer..."
No encerramento do filme, a volta das várias mãos, de várias delas, com o giz na lousa onde, uma a uma e cada uma delas, ao lado das torres por elas desenhadas no estilo do cenário de Dogville, assinam seus nomes. A escritura subjetiva e a impressão digital de sobreviventes de uma história de dor, martírio e esperança. Já refeitas e reconstruídas, na liberdade e na vida de depois.

Comentários

  1. Emocionante meu caríssimo Demerval Netto!!!

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  2. Fui ver o filme no último domingo... A plateia toda aplaudiu no final -- gesto que, eu soube, se repete em várias sessões...
    Teu texto mostra como entraste generosa e afetivamente na narrativa, naquelas histórias todas, oferecidas ao espectador por uma escolha absolutamente feliz de Suzanna Lira -- de não focar nos fatos brutos da tortura e sim nas vidas, nas memórias de uma convivência de mulheres, unidas no ambiente mais absurdo possível de uma prisão (política).
    Eu, que farei 70 anos em dezembro deste ano, me enxerguei um pouco naquelas mulheres. E fiquei com uma certa esperança de algo melhor.
    Ao chegar em casa, vi a mensagem de uma amiga dessa mesma geração, me falando de uma reportagem maravilhosa sobre mulheres mais velhas no poder, de um jornal espanhol. Link abaixo:

    https://www.elperiodico.com/es/mas-periodico/20190928/mujeres-mayores-poder-envejecimiento-autoridad-70-anos-7654802?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=btn-share

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  3. Político, forte, denso e emocionante. Nossas vidas, repassamos com estas experiências.

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