A Tabacaria

A TABACARIA, FORMAÇÃO, NAZISMO E FREUD


Filme com produção de Áustria/Alemanha (2018), com direção de Nikolaus Leytner. Aborda o amadurecimento de um jovem de 17 anos, recém chegado a Viena, que passa a trabalhar numa tabacaria, como aprendiz de um judeu austríaco, ora rigoroso, ora afetuoso, que tem como um dos ilustres clientes frequentadores o psicanalista Sigmund Freud, numa Áustria às vésperas de ser ocupada pelos tropas do 3o Reich.
Mais um filme que se ambienta em importante e sempre oportuna crítica sobre as chagas do nazismo e o terror que espalhou pelos países da Europa onde chegou. Um dos últimos papéis do ótimo ator Bruno Ganz, num refinado, cativante e simpaticão Dr. Freud. Em alguns momentos, a fragilidade, e quase debilidade física do ator, já bem idoso, se transfere ao personagem, o que nos deixa na dúvida sobre as reais intenções na caracterização do velho pai dos estudos da psiquê humana.
Cinema e nazismo, cinema e psicanálise, são temas que vêm se cruzando há muito tempo, buscando um entendimento do que significam, cada um deles, e na relação que estabelecem entre si. Muitos filmes já se dedicaram a uma e outra.
Desta vez, em primeiro plano a bela amizade entre um jovem vindo do interior rural da Áustria, em busca de descobertas e afirmações, e um Dr. Freud já no ápice da carreira, no alto de suas experiências clinicas e do seu famoso divã, num cenário crescente de opressão e perseguição nazista em Viena.
Baseado num romance de formação, o jovem Franz percorre os ritos de iniciação, no trabalho, na política, no amor, na maturidade precoce e no desencanto.
Filme que faz a escolha por imagens em tons escuros, denso, com ritmo lento, numa Viena sombria, com cenas diárias que se repetem, na tabacaria e ao redor, porque lá a vida se repete. À espera de algo que virá e que a tudo interromperá. Destaque para o estilo sóbrio e requintado, quase noir, bem fotografado e encenado, do bom cinema austríaco e alemão. E para a ótima construção do ambiente estético e charmoso da tabacaria, em cores quentes e esmaecidas, como um microcosmo, lugar de refúgio, de cultura, de prazeres e de política, e do cheiro do tabaco.
A agitação e tensão da cidade, na fase da pré-ocupação nazista, se somam à ebulição interna do jovem protagonista, suas fantasias e sonhos, no curso de uma conturbada paixão pela jovem e experiente Anezka, mulher dos bares, dos palcos de streap e das ruas, que lhe recusa a fidelidade do amor. Na sua ansiedade e frustração é amparado pela sabedorias e pelo afeto de um solidário e paternal Dr. Freud, entre conselhos sobre temas do amor e dos mistérios do feminino, e baforadas de preciosos charutos cubanos, artigos de luxo da tabacaria.
A intensa paixão do jovem Franz, seus interditos, inquietações, miragens alucinantes com o objetivo de nos confundir -- se reais ou irreais, e seus pesadelos apavorantes, são matéria para os ouvidos pacientes de Dr. Freud e, de certa forma, premonitórios e indicativos do horror e da quase irrealidade que estão por vir.
Franz, no seu curto e crucial aprendizado nas artes da tabacaria e da vida, vai colecionando perdas sucessivas, relacionadas a seu mestre de ofício, à sua amada inalcançável, e a seu sábio professor. Todos, de um modo ou de outro, se dissolverão nas brumas da noite fechada que cai sobre Viena.
Histórias de formação habitam com frequência tanto o mundo do cinema como o da literatura, diferenciam-se nos seus universos culturais, sociais, políticos, de época e lugar. Em A Tabacaria, o foco em uma breve trajetória e sua interrupção, tem o nazismo e a figura de Dr. Freud constituindo-se nos elementos temáticos que se atravessam em seu percurso.
Entre promessas, buscas e desejos, em uma turbulenta história, tudo se esvai aos poucos, até explodir na violência e crueldade incontidas do nazismo exacerbado.
Filme singelo, mas com força narrativa que nos envolve, ao contar uma história sobre a paixão, a dor, a indignação. Filme de amarguras, onde o real, com as tintas do absurdo e da insanidade, suplantam tanto o sonho como a própria existência.

Comentários

  1. Aqui em Porto Alegre as sessões estão sempre cheias, pra ver Tabacaria. Ainda bem. O Nazismo não nos é desconhecido, nem é coisa do passado. E a formação de um jovem jamais nos é indiferente. Ainda mais tendo como exemplos Freud e o delicado e comovente dono da tabacaria... Muito bom!

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