Flávio Migliaccio

 Migliaccio, um Ator Brasileiro.



A primeira imagem, forte, expressiva, emblemática de Flávio Migliaccio no cinema brasileiro que vem na memória é a do filme "Terra em Transe" (1967). Ali, a face do povo, no transe, sua representação, sua encarnação, em poucos minutos, " — o povo sou eu, com sete filhos, e não tenho onde morar...", eternizado no plano, feito pela câmera na mão de Dib Lutf, no filme de Glauber Rocha. 
Flávio Migliaccio faz juz ao título do filme documentário recém lançado, "Migliaccio, o Brasileiro em Cena" (2020).
Flávio passou pelo Cinema Novo, ator com sua persona de brasileiro típico das classes populares, entre outros filmes como em "O Grande Momento" (1956), de Roberto Santos, em "Pedreira de São Diogo" de Leon Hirszman (no longa "Cinco Vezes Favela" / 1962), em "A Hora e a Vez de Augusto Matraga" (1965), também de Roberto Santos. Herdeiro de um sólido trabalho de formação de ator no Teatro de Arena, com Augusto Boal.
Nos anos 1960 atuou ainda, buscando sempre a encarnação da identidade dos nossos diversos tipos populares, em "Todas as Mulheres do Mundo" (1966), de Domingos de Oliveira, "O Homem que Comprou o Mundo" (1968), de Eduardo Coutinho, e "Como Vai, Vai Bem?" (1968), filme de episódios, organizados por Alberto Salvá. Passado o periodo do Cinema Novo, atuou em alguns dos filmes da pornochanchada nacional, como "A Penúltima Donzela" (1969), "O Donzelo" (1970), "Em Busca do Susexo" (1970).
Tendo criado e interpretado na TV o personagem do seriado infantil "Tio Maneco", levou-o para o cinema em dois filmes, "Aventuras do Tio Maneco" (1971) e "Maneco, o Super Tio" (1978). Brilhou intensamente com humor dramático no personagem do ex-jogador de futebol do Corínthians, Naldinho, nos dois longas de Ugo Georgetti, "Boleiros, Era Uma Vez o Futebol" (1998) e "Boleiros, Vencedores e Vencidos" (2006). Sempre na tela o ator essencialmente brasileiro, na caracterização do homem brasileiro, na comédia, no drama, na aventura, ingênuo, clownesco, alegre, sofrido, miserável, heróico, melancólico, diversos tons e matizes de um personagem símbolo de uma humanidade, de um caráter, o recorte de um povo, um país.
Foi ator no teatro, ator, roteirista e diretor no cinema e marcou também na TV com vários personagens, alguns antológicos como Xerife, em "Shazam, Xerife e Cia" (1972), ao lado de Paulo José, e em dezenas de novelas e seriados na TV Globo como "Duas Vidas", "O Casarão", O Salvador da Pátria", "Rainha da Sucata", "Sítio do Picapau Amarelo", "Senhora do Destino", "Duas Caras", "Caminho das Índias", "Passione", "Tapas e Beijos", entre tantas e tantos.
Na TVE, além de "Aventuras do Tio Maneco", série que escreveu, dirigiu e atuou com mais de 400 programas, que Flávio reclamava na justiça contra seu desaparecimento do acervo da emissora, atuou também na série educativa sobre o cinema, "Olho Mágico", início dos anos 80, co-produção com o Cineduc, série que tive a honra de produzir.
O documentário em cartaz, "Migliaccio, o Brasileiro em Cena", dirigido por Alexandre Rocha, Marcelo Pedrazzi e João Mariano, tem como roteirista seu filho, o jornalista Marcelo Migliaccio. No filme, a trajetória de um ator-personagem, de uma vida e uma carreira de grande inspiração, entre o humor e a melancolia. Em uma entrevista, feita aos seus 80 anos, conta sua história desde sua infância, relata situações divertidas que viveu e fala, com serenidade e profundidade, sobre a sua arte de representar e de contar histórias. Outras entrevistas mais antigas, arquivos de imagens, trechos de trabalhos em teatro, filmes e tv ilustram seu depoimento, também a peça mais recente "Confissões de um Senhor de Idade", com o ator em um diálogo imaginário com Deus, numa espécie de balanço de sua existência.
Ternura, alegria, carisma, firmeza, simpatia, tristeza se alternam. Do anonimato à fama, da fama ao anonimato, um percurso vivido e exposto na tela.
Nos créditos finais, somos informados que seu filme "Os Mendigos", que escreveu e dirigiu em 1962, não foi possível ser utilizado no documentário por ter sua cópia retida, trancada, na Cinemateca Brasileira, inacessível, símbolo da irresponsabilidade e descaso dos últimos tempos com a cultura brasileira. 
Flávio nos deixou brutalmente em 2020, na sua carta de despedida lamentou que a humanidade não tenha dado certo e que seus 85 anos foram jogados fora num pais como este em que vivia.
Flávio Migliaccio, tive meu último encontro com ele no Teatro Municipal do Rio, na plateia de um concerto de um Prêmio Shell de Música. Um reencontro com um ser humano de grande afeto, simplicidade, dignidade. Seu talento, apesar das sombras que o cercaram no fim de sua vida, foi de muita luz, um ator inteligente, inquieto, criativo, acima de tudo, iluminado.
Um ator a ser lembrado, celebrado.
No filme, uma de suas frases para a câmera: " — Eu não sei o que vocês vão fazer com esse filme não, hein cara... não sei o que vocês vão fazer comigo...".

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