Onde está você, João Gilberto?
UM FILME PRA JOÃO,
COM AFETO E OBSESSÃO
"Quem ouvir
o Ho-Ba-La-Lá
terá
feliz o coração (...)
Vem ouvir o Ho-Ba-La-Lá
Ho-Ba-La-Lá,
uma canção"
(João Gilberto)
Onde Está Você, João Gilberto?, já lançado em circuito, ultrapassa os limites do
filme documentário e mergulha na construção ficcional de seu personagem, objeto
do desejo do documentarista. Não é um filme dedicado à biografia do cantor, mas
um tributo, nas asas da paixão, da admiração, da imaginação. Faz lembrar o
mestre John Ford, diretor de grandes clássicos do cinema norte americano, que
não hesitou em dizer que, muitas vezes, entre a realidade e a lenda, imprima-se
a lenda.
Desta feita, o cineasta suíço Georges
Gachot nos apresenta um diário de uma busca, iniciada pelo alemão Marc Fischer,
que chega ao Brasil em 2010 à procura de encontrar o recluso João Gilberto, e
que publica suas aventuras no livro Ho-Ba-La-Lá
(Companhia Das Letras, 2011), pouco antes de sua morte, por suicídio.
Inspirado nesse trajeto e na obsessão
narrada por Fischer, Gachot realiza uma nova viagem em busca do sonho
imaginado, de uma intensa e incansável procura pelo já fantasioso e intangível
artista, considerado o inventor da Bossa Nova. O que resulta no documentário,
um múltiplo de narrativas, onde se cruzam e se fundem percursos de vários
perseguidores de João Gilberto. O resgate do périplo de Fischer, ilustrado por
leituras de vários trechos de seu livro, in loco nos cenários por ele
visitados, e pelas inúmeras fotos com que registrou sua aventura e seu delírio,
é a base do filme, que desliza e avança, através das lentes dirigidas por
Gachot, pelos ambientes e locações de um mítico Rio de Janeiro, por mesas de
bares e restaurantes, ruas, calçadas, esquinas, praias, corredores e quartos de
hotéis, à procura e à espera do milagre, do sonho impossível.
Gachot já filmou outra histórias
sobre artistas brasileiros, como Maria
Bethânia / Música é Perfume (2005), Nana
Caymmi / Rio Sonata (2010) e Samba
(2014) conduzido por Martinho da Vila.
Conhecido como o mais brasileiro dos
suíços, o cineasta apostou agora numa incursão que mistura realidade, memória e
invenção, sendo dessa vez também personagem, no centro da cena, na caça ao
animal que se esconde e escapa. Ao seu lado está a produtora Rachel Balassiano,
que participou do livro de Fischer – sendo lá nomeada como detetive Watson, enquanto
o autor se auto intitula Sherlock -- e é aqui companheira de Gachot, no passo a
passo da nova jornada, cineinvestigativa. Nela ainda embarcam alguns
tripulantes da antiga nave bossanovista, como João Donato, Roberto Menescal e
Marcos Valle, e ainda parceiros da intimidade do astro rei, como Miúcha e
Otávio Terceiro. Lembranças e casos, musicais, afetivos, engraçados e até
assombrados, transbordam nos relatos exóticos desses, visitados ao longo do
filme como modo de apropriação de memórias, como pistas, deixadas pelo
famigerado como rastro em seu caminho.
Onde Está Você, João Gilberto? é cinema de afeto e invenção poética, onde o legendário
cantor se transfigura em personagem ficcional, por obra do filme e, com
certeza, também de si próprio.
Ho-Ba-La-Lá é a quarta faixa do primeiro disco de João, Chega de Saudade (1959). Sua força e magia inundam de emoção no
decorrer e até a última e primorosa sequência do filme, encenada em outro
símbolo emblemático do Rio, o Hotel Copacabana Palace. Onde mistério, suspense,
anseio e desejo transitam em câmera ágil, na busca da captura, entre a
expectativa, o impasse e a dúvida, e se traduzindo em sonoridade, na voz ímpar
e na batida diferente das cordas ásperas, únicas e milagrosas do violão de
João. É a canção guia de um roteiro sobre a ausência e a falta. Sobre a
saudade, de João, da música, do Rio e do Brasil.
Adorei o texto. Muito bom ler uma resenha que aborda a linguagem do cinema.
ResponderExcluirComentário enviado pelo compositor Renato Rocha.
ResponderExcluirAssisti ao filme do João. Comprei o livro quando saiu. Acho que ele é o maior tributo já prestado a um artista por um seu admirador – superior aos documentários encomiosos, aos fãs-clubes, e mesmo superior ao diário que o cara que fuçava a lata de lixo do Dylan escreveu. O filme – que segue o livro, como um mapa que não chega a lugar algum – é isso tudo ao quadrado. Guiado pelas pegadas de um desaparecido que tentou seguir as pegadas de quem nunca aparece, o diretor investiga também o investigador e explícita com a câmera o que só o cinema mostra: o banco onde ele esperava o seu Godot passar, as pessoas com quem João
conviveu, os lugares que ele percorreu, e, principalmente, o banheiro, a privada do banheiro, a pia, o corredor sombrio e a ante-câmara comum e inexpugnável do lado de fora da porta do apartamento onde, provavelmente, estaria o hermitão mais afinado do mundo. Durante essa meta-procura o filme toca algumas pérolas do mestre e o faz da maneira mais despojada, através de clips de DVDs ou criando despretensiosos clips com imagens circunstanciais: o espaço aéreo do Leblon, uma paisagem de janela de ônibus, ou um mangue qualquer nota na casa do Menescal, mostrando que a música de João transcende as imagens. Como o livro é a resenha de um fracasso – teria o escritor se suicidado caso tivesse conseguido que João tocasse o "Obalalá" em seu violão? – e como ninguém é de ferro, o diretor inventa uma cena em que, finalmente, isso acontece, supostamente do lado de fora da porta trancada do apartamento do cantor. Muito melhor seria deixar o diretor ali, esperando ouvir, e só ouvindo o silêncio continuado do mestre, enquanto aparecem os créditos finais.
Renato Rocha