Era Uma Vez Um Sonho

A AMÉRICA PROFUNDA NO CINEMA

O cinema norte-americano tem cultivado, ao longo do tempo e nos seus diversos gêneros, filmes que fazem o elogio fácil do American way of life, dos valores idealizados do American dream. 

Noutro trilho, os blockbusters de espetacularização e culto à violência, ao horror, e as intermináveis sagas de super-heróis. 

Mas faz também filmes que procuram descer nas entranhas da America profunda, tocando feridas abertas, pesadelos, infortúnios e amarguras. E em variados temas, seja nas questões étnicas e raciais, nas crises e malfeitos na política, nas guerras sangrentas que empreendeu e patrocinou, no submundo e nos negócios das drogas, dos jogos de azar e da prostituição, nas relações entre o poder e a mídia, o poder e o esporte, na exploração do trabalho e exclusão social, nos surtos de violência e psicopatia, e na descida ao inferno e ao abismo das estruturas decadentes da família americana. 

Filmes dedicados à questões e temas difíceis, delicados, árduos, pesados, melancólicos, com veias e vísceras abertas. De todos eles, o tema da família americana, seu retrato mais duro, sombrio, perverso e sem glamour, vem pautando filmes importantes, e que têm conseguido desconstruir, ou colocar em crise, um dos símbolos e ícones mais fortes da identidade americana. Alguns títulos são emblemáticos, de filmes mais antigos e já clássicos aos mais próximos. Relações problemáticas no seio da família, no todo ou por alguns de seus membros, foram tratadas por diretores como Douglas Sirk, Nicholas Ray, Otto Preminger, Elia Kazan e mais contemporâneos como Robert Aldrich e Mike Nichols. Dos filmes mais recentes, destaco aqui "Beleza Americana" (Sam Mendes, 1999), "Álbum de Família" (John Wells, 2013) e "Para Sempre Alice" (Richard Glatzer, 2015). 

E nessa esteira, passo o foco para um filme atual, "Era Uma Vez Um Sonho" (Ron Howard, 2020), em cartaz na Netflix, baseado no livro Hillbilly Elegy, de J. D. Vance, melodrama com excelentes performances das atrizes Glenn Close e Amy Adams. Nele, contido o retrato amargo de uma típica família sulista norte-americana, organizado em narrativas paralelas, mostrando seus conflitos em três tempos, tendo como figuras dramáticas centrais uma mãe e uma filha, vividas por Close e Adams. 

 À margem do sonho americano, um núcleo famíliar de baixa escolaridade e renda, de trabalhadores brancos, patriotas, com seus apegos a raízes, valores morais e seus desvios, na fronteira entre o que revela e o que esconde, suas conturbadas relações fracassadas de amor e desamor. Entre humanos e vilãs, em seus impasses, segredos, egoísmos, sofrimento, uma família exposta, aos pedaços, um filme sobre excluídos e perdedores. E que, ao meu ver, sobrevive às críticas desferidas sobre seus clichês, e nos dá um retrato da América profunda, em um traço nítido e amargo da era Trump.

Comentários

  1. Comentário de André Pinaud.

    Assisti ontem, pai! Que filme, que atuações. Ron Howard fazendo o que faz de melhor. Mas queria acrescentar umas percepções sobre o filme.
    O que mais me chamou atenção é que é um filme sobre quebra de padrões. Sobre a interrupção de ciclos de repetição. Sobre se libertar das suas heranças ancestrais e traçar um caminho diferente. Sobre perdoar. Sobre ressignificar. Cada geração, mesmo que massacrada cada uma ao seu jeito, conseguiu avançar um pouquinho para que a próxima conseguisse ir ainda mais. E no final das contas, essa história ressoa com todos nós! Somos frutos do que nossos pais lutaram para nos dar de oportunidade para traçarmos nosso próprio caminho, independente dos desafios e dos desvios. Fiquei com isso tudo muito forte na cabeça depois de ver esse filme. Te amo, pai!

    ResponderExcluir
  2. Boa interpretação filho, um outro ângulo, com certeza!
    Os filmes têm centro e lados. E a gente escolhe, pelo nosso olhar e percepção o que mais comove, onde o lugar da projeção. A trajetória do filho, sua capacidade de entender, amar, perdoar e seguir, é tb um nicho poderoso.
    O filme tem muitas camadas mesmo.
    Valeu! Com todo o amor! Bj

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas