Michel Piccoli

MICHEL PICCOLI, AU REVOIR!


Michel Piccoli deixou a vida e a arte no mês de maio, aos 94 anos. Ator, persona, marca, imagem, lenda do cinema francês.
Iniciou sua carreira em "French Cancan" (1954), de Jean Renoir, mas teve seu primeiro grande papel ao lado de Brigitte Bardot, já ícone e sex simbol absoluto do cinema, em "O Desprezo" (Le Mépris, 1963) de Jean-Luc Godard, baseado em romance de Alberto Moravia. Na história, os dois são casados, ele no papel de um escritor roteirista escrevendo um filme a ser dirigido por Fritz Lang, com o próprio cineasta alemão em cena no filme. Piccoli estreia como protagonista junto a uma estrela, numa obra de um gênio e contracenando com outro, no que até hoje se pergunta se é um filme sobre um filme, um filme sobre o cinema, um filme sobre um relacionamento, ou tudo isso junto. Um meta filme, sobre um filme em construção e um casamento em desconstrução. Com erotismo, nudez de Bardot, sátiras sobre as convenções do cinema, diálogos afiados e com citações de Homero, Dante, Corneille, Brecht, aclamado como um dos melhores da nouvelle vague. Piccoli é aqui revelado num clássico do cinema, para nunca mais sair deles.
Além de Renoir e Godard foi filmado pelas lentes de Alain Resnais, Claude Chabrol, Louis Malle, Claude Sautet, Roger Vadim, René Clement, Jacques Demy, Agnés Varda, Jacques Rivette, Bertrand Tavernier, Leos Carax e outros não franceses, como o espanhol Luis Buñuel, o grego Costa-Gavras, o inglês Alfred Hitchcock, o português Manoel de Oliveira, os italianos Marco Ferreri, Ettore Scola e Nanni Moretti.
Com Buñuel, foi ator de seis filmes, todos antológicos. Em "A Bela da Tarde" (Belle de Jour, 1967), faz o personagem fundamental do amigo do marido de Séverine, que desperta seus desejos sexuais escondidos e suas ambiguidades, que a levam a tornar-se uma das garotas do bordel de Madame Anais. Piccoli e Deneuve duelam com sutileza e classe em cenas e diálogos inspirados de "Belle de Jour".
Atuou na filmografia de Buñuel ainda em "Diário de uma Camareira" (Journal d'une Femme de Chambre, 1964), "A Via Láctea / O Estranho Caminho de São Tiago" (La Voie Lactée, 1969), "O Discreto Charme da Burguesia" (Le Discret Charme de la Bourgeoisie, 1972), "O Fantasma da Liberdade" (Le Fantome de la Liberté, 1974), "Esse Obscuro Objeto do Desejo" (Ese Oscuro Objeto del Deseo, 1977).
Com Resnais fez "A Guerra Acabou" (La Guerre est Finie, 1966), com Demy fez "As Garotas Românticas" (Les Demoiselles de Rochefort, 1967), com Hitchcock fez "Topázio" (Topaz, 1969), com Malle fez "Atlantic City" (1980), todos cults e celebrados pela crítica.
Em "As Coisas da Vida" (Les Choses de la Vie, 1970), drama romântico de Claude Sautet, Piccoli atua com Romy Schneider, em beleza de tirar o fôlego, e Léa Massari, com um personagem que após grave acidente, em estado de coma, elabora suas memórias, em rico monólogo interior em torno das pequenas alegrias e tristezas, suas histórias de vida e de amor.
Em 1973 protagonizou com Mastroianni, Ugo Tognazi e Philippe Noiret "A Comilança" (La Grande Bouffe), de Marco Ferreri, comédia dramática franco-italiana sobre quatro amigos que se encerram numa mansão para comer até morrer. Prêmio da Crítica do Festival de Cannes, crônica em tom corrosivo sobre sexo, questões existenciais e ideais burgueses.
Outro seu papel marcante foi em "Loucuras de uma Primavera" (Milou en Mai, 1989), de Louis Malle, a partir da morte de uma matriarca em um casarão no interior da França. Seu personagem, Milou, e seus famíliares, em conflitos, revelações e desavenças sobre a herança e o destino da propriedade, tendo no entorno o movimento rebelde de maio de 68 em Paris.
Outro destaque, "A Bela Intrigante" (La Belle Noiseuse, 1992), de Jacques Rivette, um filme mágico e denso, onde Piccoli vive um instigante e obsessivo pintor na sua maturidade, em busca de sua obra perfeita, tendo como modelo nua a jovem e bela Emmanuelle Béart. Cenas de um artista em criação se misturam a desejo, tensão e conflito, permeando um drama, intenso, perturbador, fascinante.
Entre seus filmes finais foi magistral em "Habemus Papam" (2011), comédia e drama de Nanni Moretti, interpretando um papa que acaba de ser eleito e que entra em crise pessoal e de suas convicções religiosas, se recusa a assumir o mandato papal e abandona o Vaticano em pleno conclave, desaparecendo em aventuras e desventuras pelas ruas de Roma.
Sua imagem e suas performances, inesquecíveis em tantos filmes, simples, complexos, românticos, cômicos, dramáticos, políticos, épicos, vigorosos, de uma obra de mais de 200 produções, são representativos de uma expressiva e memorável trajetória.
Michel Piccoli foi também um ativista, engajado de esquerda, ligado ao Partido Socialista francês, com participação em lutas democráticas de seu país, unindo muitas vezes em sua vida a arte e a política.
Ícone de um cinema feito por grandes mestres, ator e personagem de tramas na tela que fizeram a própria existência do cinema francês e mundial, parte de uma geração que vem nos deixando nos tempos que se vão, pouco a pouco.
Em 1995, Piccoli apresentou um documentário dirigido por Godard sobre a história do cinema realizado na França. Uma encenação em um quarto de hotel, uma conversa e um debate entre o ator e o diretor sobre a história versus uma espécie de anti-história/contra-história do cinema francês, uma arqueologia com tese e antíteses, que se constituiu em um dos episódios da série do British Film Institute sobre os 100 anos do cinema.
Piccoli se confunde com essa cinematografia.
Merci, Piccoli! 
Au revoir!

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