Graças a Deus

RELIGIÃO E PODER, DO SILÊNCIO AO GRITO


O novo filme de François Ozon, Graças a Deus (Grâce à Dieu, França, prêmio Urso de Prata no Festival de Berlim 2019) se insere na linha do cinema de investigação, baseado em fatos reais. Sobre o tema da violação de menores, pedofilia e igreja católica, a marca de uma violência sempre penosa e difícil de ser enfrentada por suas vítimas.
Na cena, um dos maiores escândalos de abuso sexual em crianças, envolvendo mais de 80 delas, ocorrido na arquidiocese de Lyon, na França, nas hostes do cardeal Philippe Barbarin, nos anos 1980 e 1990. Algumas de suas vítimas, somente cerca de 30 anos depois, partiram em busca da reparação moral, denunciando publicamente e ingressando com as queixas-crime na justiça.
Em Spotlight, Segredos Revelados, direção de Tom McCarthy, vencedor do Oscar de melhor filme de 2016, o tema é tratado na perspectiva da investigação de um grupo de jornalistas do jornal The Boston Globe, sobre abusos praticados na cidade norte-americana de Boston. Aqui, repórteres e editores são os protagonistas da história, com as vítimas aparecendo num segundo plano.
Em O Clube, de 2015, também Urso de Prata em Berlim, dirigido pelo chileno Pablo Larrain, são os próprios religiosos, em sua clausura, a expiar crimes e pecados.
No filme de Ozon, ao contrário dos citados, a força está no drama dos que foram o alvo da violência, em narrativa sobre a dor, a culpa, a vergonha, o medo e a coragem. E ao optar por esse caminho, escapa do didatismo, do maniqueísmo e do melodrama, se impõe através da boa construção dos personagens em suas histórias e seus limites, na sofrida decisão, dos agora adultos, em enfrentar o trauma dos tempos da infância, em partir na viagem do silêncio ao grito.
Ozon, em alguns dos seus filmes anteriores (8 Mulheres, 2002 / O Refúgio, 2009 / Potiche - Esposa Troféu, 2010 / Jovem e Bela, 2013 / Uma Nova Amiga, 2014 / Frantz, 2016 / O Amante Duplo, 2017), obra quase toda dedicada a dramas vividos por personagens femininas, aqui aponta em outra direção e constrói uma história sobre a fragilidade masculina, conferindo humanidade e densidade a personagens em busca de sua própria reconstrução.
" -- Foi tanto tempo atrás, por que voltar a isso, agora?"
Graças a Deus aposta em boas soluções na forma de contar a história e lidar com algumas questões.
Uma delas está no eixo da narrativa, deslocando aos poucos o foco central da relação vilão x vítima, ultrapassando a prestação de contas pessoais, e partindo para o enfrentamento direto da estrutura de poder da igreja que acobertou as histórias dos abusos dos menores. Assim, retira a questão da esfera individual ampliando-a para o lugar político onde alcança a sociedade por inteiro. Só desta forma passa a ser possível aos personagens centrais enfrentar a incômoda pergunta acima, proferida com insistência por seus familiares e membros da igreja, a se esquivar e se proteger atrás de nebulosos véus, durante uma dura e difícil jornada pela cura, pela verdade e pela justiça.
Outra importante sacada do roteiro foi a alternância de protagonistas ao longo da trama. Três dos ex-meninos vítimas do mesmo padre pedófilo -- Alexandre, François e Emmanouel, se revezam no primeiro plano da história, ao lidar com a memória dos fatos vividos por eles quando crianças, impactando de modo diverso a cada um e a suas famílias, em diferentes tons, intensidade e complexidade.
Graças a Deus ousa muito além da denúncia da pedofilia e suas feridas no seio da igreja, questionando também alguns de seus preceitos e dogmas, entre eles a figura do perdão, encaminhada pela ordem católica como o instrumento para a quitação dos malfeitos. Cabe a um dos personagens, já nos seus 40 anos, ainda fervoroso na fé catolica, casado e com vida familiar estável, a negar-se, em momento crucial do conflito, à concessão do perdão ao seu algoz, vendo no gesto que lhe era quase imposto, uma armadilha com a qual se tornaria definitivamente refém de seu poder e de sua impunidade. 
Polêmica aqui, sem dúvida!
Cenas expressivas mostram alguns deles depondo, em situações diversas, no âmbito da própria igreja ou na delegacia de polícia, em sua imensa dificuldade, aflição e bloqueio no relato, na lembrança, dos detalhes das cenas dos abusos.
Filme de muitas camadas, de forte viés político e voltagem de emoções, que se desenrola tentando desconstruir clichês batidos sobre o tema.
Cinema de ótimas escolhas estéticas, na direção, roteiro e atuações, exemplar em sua dramaturgia sobre a difícil e dramática ruptura da dor e do silêncio, projetando-se como um libelo amargo sobre a transformação, a redenção, a esperança.
Quanto à justiça na vida real, em relacão aos crimes cometidos, sabemos que foi parcialmente aplicada, ainda incompleta, conforme veredito judicial, publicado em março deste ano, dele somos informados pelos creditos finais na tela.
Sabe-se também que os advogados do padre Bernard Preynat, principal acusado e ainda em liberdade, apesar dos fatos comprovados, tentaram impor recursos, com base na presunção da inocência, para adiar a estreia do filme. A premiação em Berlim deu ao filme de Ozon o prestígio e a força para seu lançamento mundial, com enorme repercussão na França, já atingindo por lá 1 milhão de espectadores.
Cinema e religião, ficção e realidade, escândalo, crime, poder e fé, com suspense e tensão, no filme e fora dele.

Comentários

  1. Comentário enviado pela jornalista e amiga Verônica Fraga.
    Excelente crítica! Aguçou minha vontade de ver o filme do François Ozon, diretor/autor que gosto muito. Já tinha assistido  Spotlight, Segredos Revelados e ficado muito impressionada com o fato de uma sociedade inteira - do juiz ao diretor de escola - conseguir abafar uma prática tão monstruosa e paradoxal, por tanto tempo, sob a bênção de Deus, o que torna tudo ainda mais hipócrita. Agora, deve ser mesmo muito interessante ver o tema e o drama pela ótica de Ozon, com sua forma tocante, intensa e única de abordar os sentimentos e as situações dramáticas da vida. (Verônica Fraga)

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  2. Comentário enviado pelo professor (Letras/Literatura/Filosofia) Luiz Fernando Medeiros de Carvalho.
    Excelente critica!
    (ainda não vi o filme)
    É impressionante a informação de que advogados tentaram evitar a estreia do filme.
    A questao central de sua crítica é o modo como a narrativa intervém como antídoto ao preceito impositivo do perdão.
    Excelente informação de toda a produção cinematográfica do diretor Ozon.

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