Você Nunca Esteve Realmente Aqui

CINEMA DE AFETOS E CULPAS, DE MORTE E VIDA


Numa revisão das melhores produções em cartaz no ano de 2018, não comentados no Blog, não há como não destacar Você Nunca Esteve Realmente Aqui, de Lynne Ramsay (EUA / Reino Unido, 2017), que estreou em agosto passado, abordando a questão da pedofilia.
O tema já foi visitado muitas vezes pela sétima arte, com alguns filmes marcantes, entre o melodrama, o libelo, a denúncia. Sleepers: A Vingança Adormecida (Barry Levinson, EUA, 1996); Sobre Meninos e Lobos (Clint Eastwood, EUA, 2003);  Educação (Pedro Almodóvar, Espanha, 2004); A Caça (Thomas Vinterberg, Dinamarca, 2012); Spotlight: Segredos Revelados (Tom McCarthy, EUA, 2015). E ainda sem estreia marcada para o Brasil em 2019, o polêmico Kler / Clero (Wojciech Smarzowski, Polônia, 2018).
O abuso sexual de menores foi pauta que mereceu inúmeros debates e campanhas durante 2018. Também o cinema buscou tratá-lo, neste filme que o circunscreveu entre a violência, o horror, o afeto e a poesia. 
Você Nunca Esteve Realmente Aqui põe foco não só no tema da pedofilia mas também no da via crucis de um matador de aluguel. Obra noturna, sombria, protagonista angustiado, depressivo. Cortes no tempo fazem a conexão entre o presente do matador e o seu passado, com flashbacks do personagem quando criança, torturado pelo pai para os limites da resistência física. Na cena atual, o duro e frio profissional no serviço de matar se alterna no menino na relação afetuosa e lúdica do filho com sua velha e debilitada mãe, também vítima da violência doméstica no passado, cúmplices os dois de uma dolorosa memória. Filme que narra a saga de Joe (ator Joaquin Phoenix), um matador de aluguel atrás do resgate de uma menina, Nina (jovem atriz Ekaterina Samsonov), filha de um figurão, sequestrada por uma quadrilha, ligada à uma rede de pedofilia com envolvimento de politicos, inclusive alguns próximos à menina. Inicialmente, sendo contratado para o serviço pelo seu agente habitual que lhe faz as encomendas e que, depois de vários incidentes, decide seguir por determinação própria em nova e dramática ação para salvá-la, forma de salvar ainda e talvez sua própria infância e o sentido da vida. 
Nas perseguições, sequências muito bem construídas, que mais sugerem do que explicitam a violência. Onde se impõe o thriller, o ritmo veloz, a caçada implacável, o road intenso pelas ruas e esquinas noturnas da cidade, a busca da redenção. Filme que trata da violência fisica, moral e psicológica, que cruza os tempos cronológicos da história e também o tempo externo e interno do personagem, que se move entre o silêncio, a dor, a hesitação e a obrigação de matar. Atmosfera pesada e dentro dela os diversos simbolismos do sujeito complexo, no lugar entre a inocência e a perversão. Com cenas de ação filmadas de forma sutil e inventiva, no escuro ou através de vidros e espelhos, ou de imagens de câmeras de segurança de ruas e prédios, jogando com proximidades e distanciamentos.
Produção dirigida por uma mulher, a escocesa Lynne Ramsay, de estilo apurado, que dirigiu antes o forte, trágico e memorável drama psicológico familiar Precisamos Falar sobre Kevin (EUA / Reino Unido, 2012).
Durante seu percurso, Você Nunca Esteve Realmente Aqui mostra convenções de gênero do filme policial noir e os vai desobedecendo, fazendo novas curvas, surpreendendo o expectador e construindo uma rede de afetos e maldades, na intenção de mostrar um personagem a ser compreendido, decifrado. Na sequência final na lanchonete, a expressão do olhar feminino da diretora, ao propor um desfecho em que a ordem muda de mão, cabendo à menina salvar o matador de sua depressão e seus pesadelos. Em seu convite, a metáfora urgente e necessária do apelo para uma nova vida. Obra que ganhou os prêmios de melhor roteiro e de melhor ator para Joaquin Phoenix, em Cannes 2017. Este, um dos amiráveis atores da atualidade, que nos brinda aqui com a construcão de um comovente anti-herói atormentado, entre a força e a vulnerabilidade, na galeria dos melhores já mostrados pelo cinema. Considerado por parte da critica como o novo Taxi Driver (Scorsese, EUA, 1976), Você Nunca Esteve Realmente Aqui apresenta narrativa e estética primorosas, e associa adrenalina, suspense, angústia e reflexão, ao levantar questões sérias que habitam uma parte também sombria de nosso entorno social.
Vale pesquisar e assistir em outras mídias onde já é possível acessar o filme.

Comentários

  1. Tinha a regra de não assistir a nenhum filme, cujo tema mantivesse relação com objeto de meu exercício profissional. Durante 15 anos, trabalhei com crianças, adolescentes e mulheres em situação de violência e fora do espaço ocupacional buscava por obras que me permitissem vagar por outros lugares. Graças a crítica do amigo Dermeval, revi esta posição e pude desfrutar do prazer de assistir a este pungente thriller.
    Apesar de toda ambiência de violências que envolvem personagens, concordo que estou diante de um “ cinema de afetos e culpas, de morte e de vida!”. De afetos que se expressam, por exemplo, no cuidado do nosso anti-herói com sua mãe, na “ cortesia profissional” entre matadores de aluguel na hora da morte, no incrível desfecho! O cuidado tem sido da ordem do feminino. Será mera coincidência a direção ser de uma mulher ou este olhar feminino imprime um diferencial?
    De Glicia Nick

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas