1945

1945, JORNADA E RITO, CONFRONTO E DOR


Na revisão dos melhores de 2018, não comentados aqui no blog, um dos belos, expressivos, doloridos e sensiveis do ano. 1945 é o título, emblemático, ano que marcou historicamente o fim da segunda guerra mundial. Filme húngaro (produção de 2017, de curta duração, 91 minutos) com direção de Ferenk Török, baseado no conto Hazatéréz, do escritor Gábor Szántó, que assina o roteiro junto com o diretor. Filme exibido no Festival de Cinema de Berlim e na 41a. Mostra Internacional do Cinema de São Paulo. Mais uma produção européia que conta com grande sensibilidade histórias sobre o sofrimento do povo judeu com os horrores do nazismo.
Narrativa de atmosfera desértica, na côr chumbo, que vai sufocando ao ir desvendando a teia do colaboracionismo com os nazistas dos moradores de um vilarejo no interior da Hungria. Ambientado no início do pós guerra, o drama do inconformismo, da culpa e do receio de um juízo final. Um trem chega na pequena e quase deserta estação, envolto na densa fumaça negra, e que pode a qualquer momento trazer a ameaça de um encontro de contas em seu desembarque. Dele saltam os dois estranhos e misteriosos personagens, velho pai e seu jovem filho, judeus ortodoxos, vestem roupas, barbas e bonés, pretos, típicos, em seu peso simbólico. Semblantes e olhares altivos, firmes. Sobreviventes do drama do holocausto, sob a suspeição de olhares locais iniciam a caminhada determinada ao vilarejo, silenciosos, atrás de um compromisso a honrar. Neste mesmo dia, haverá o casamento do filho de proeminente mandatário local, este um tipo meio mafioso tratado como um vilão caricatural. No rádio de sua casa ainda se ouvem notícias do horror da guerra, como a do lançamento das bombas nucleares norte-americanas no Japão. Recurso que vai além da contextualização histórica, indicando que a ameaça do que está longe pode vir a aproximar-se. O júbilo dos preparativos da festa irá aos poucos se transformar em agonia e medo.
Aridez e poesia expressas numa fotografia em PB contrastada, deslumbrante, a realçar diferenças e conflitos que estão por vir. Os visitantes marcham junto a uma carroça -- nela depositados dois enormes baús por eles trazidos no trem -- que avança lenta, puxada por dois carregadores que a conduzem desconfiados, tais quais comentaristas do espanto e da incerteza. A jornada percorre vagarosamente periferia e centro da pequena vila, entre ruas empoeiradas e súbitamente vazias. Com a imprevista visita, a tensão é crescente, rostos que se escondem e se esquivam em portas e janelas, de casas, bares, sala da prefeitura e igreja, homens e mulheres, torturados pelo passado recente, vão se desconstruindo em seu mea-culpa, na morbidez, no desespero da dúvida e da dívida, dos que se apropriaram indevidamente dos bens daqueles muitos judeus que um dia se foram, por eles denunciados, sendo em seguida capturados, levados, e que podem voltar. A irrupção da histeria e do desespero se deflagra na aldeia, onde ódio, desfaçatez, pânico e arrependimento reabrem feridas, transbordam em crise, com variados desfechos e trágicas consequências. Habitantes do local vão se auto punindo, como efeito resultante da oposição entre a coragem dos que chegam e a covardia da cidade.
Anjos e demônios?
Após o lento percurso pelas ruas do vilarejo, no ponto de chegada dos caminhantes, acompanhados na espreita por alguns e em seguida por muitos, são abertos os baús, para o ritual com o inesperado da revelação do amor e e da dor.
Missão cumprida?
A trajetória dos dois personagens, incógnitos em suas intenções, anônimos em sua representação de sobreviventes do martírio do holocausto, é a da busca de sua própria libertação, mas é também onde deixam seus rastros, como demolidores da desonra cínica de uma comunidade que se aliou ao nazismo. Por sua passagem, resultam sinais do que restou entre o contido, o que se rompeu e se destruiu, num lugar de vidas, dramas e casas a transformar-se num fantasma do que já foi. E a espessa fumaça negra da estação voltará como a metáfora do sofrimento e da dor. A envolver os mesmos semblantes altivos, firmes, talvez enfim libertos.
Confronto moral e ético?
Fábula moralista?
Estética cinematográfica primorosa, câmera, planos, ritmo, atores, fotografia, ambientação, vestuário, economia de gestos, silêncios e falas. Roteiro seco, ácido, mas que palpita e assombra, de filme com uma linha narrativa com o espírito de obras marcantes de um cinema com a herança de mestres como Pasolini ou Buñuel.
Vale ver em mídias em que o filme já esteja com acesso disponivel.

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