Cafarnaum


CINEMA SOBRE A URGÊNCIA DE VIVER

Cafarnaum! Em cartaz na temporada do Oscar. 
Cinema verdade, ácido, forte, com poesia mas sem glamour, com locações reais e um elenco de não atores, ao feitio da diretora libanesa Nadine Labaki.
De sua direção, e escrito e estrelado por ela, entre muitos outros ótimos filmes, pode-se destacar a comédia dramática, de estilo farsesco, E Agora Onde Vamos? (Líbano/França, 2011), intenso e divertido, onde um grupo de mulheres libanesas tenta acalmar a tensão religiosa entre homens cristãos e muçulmanos em conflito num vilarejo onde vivem, articulando ousadas peripécias. Ali, a oposição entre grupos religiosos e também entre homens e mulheres. 
Desta vez, com Cafarnaum (Líbano/França, 2018), que venceu o Prêmio do Júri do Festival de Cannes, Nadine nos leva a uma Beirute miserável, em seus cortiços, num drama de forte desalento, protagonizado por um menino em suas desventuras. Um painel com muitas questões sociais atuais, drama dos refugiados, violência doméstica, tráfico de crianças, a miséria das classes pobres no mundo árabe. Linguagem com exímio uso de câmera na mão, ágil e nervosa nas cenas de conflito, desespero, fuga e perseguição, e de drones para os planos gerais aéreos que nos mostram o contexto amplo da pobreza local. Um retrato admirável da composição sócio familiar de libaneses na linha da absoluta pobreza e marginalidade e a de refugiados sírios e africanos clandestinos no Líbano, na luta por escapar da iminente prisão e detenção. 
Realismo e fabulação andam junto. Depois de premiado em Cannes, está na disputa do Oscar de filme estrangeiro, com a única diretora mulher, concorrendo com Assunto de Família (Japão), de Hirokazu Koreeda, Guerra Fria (Polônia), de Pawel Pawlikowski, todos os três exibidos no recente Festival do Rio 2018, além de Nunca Deixe de Lembrar (Alemanha), de Florian Donnersmarck e o mexicano Roma, de Alfonso Cuarón, o vencedor do Leão de Ouro, em Veneza. Temos nesta edição o cinema libanês disputando seguidamente a estatueta de melhor produção estrangeira. O Insulto (comentado aqui no blog) em 2018, e em 2019 este Cafarnaum, que descortina as mazelas do povo pobre da periferia de Beirute, numa abordagem cinematográfica densa, que nos conduz e nos confronta com um olhar sobre um outro e adverso universo cultural, aliando observação crítica e sentimento. 
O menino Zain, protagonista, de aproximados 12 anos (ator Zain Al Rafeea), é um fora de série, um fenômeno artístico em sua representação do trágico e da esperança. No filme, o mundo ao redor é visto pelos seus olhos. Testemunha e vítima, junto com sua irmã mais nova, de abusos sexuais cometidos pelos pais e por traficantes de menores, escolhe a rua, lugar muitas vezes de violência, abandono e malandragem, como único espaço possível de liberdade. E é nela que se darão sua jornada e suas conexões com outros personagens do diverso cenário humano e social trazido pelo filme. 
Logo nas primeiras cenas, antes da trama voltar no tempo, somos introduzidos no libertário mundo de Zain, na sua coragem e determinação no enfrentamento de seu martírio, pelo inusitado e espantoso, ao ingressar com ação nos tribunais processando os pais por tê-lo posto no mundo. Na cena, a breve participação de Labaki no papel de sua advogada. Esse o surpreendente ponto de partida do filme. Triste e bela saga de um menino, pelo sofrimento e rebeldia, em sua urgência de viver e transformar sua realidade, em direção à maturidade. 
Mais um filme sensível e inteligente que nos mostra a maioridade do cinema libanêz.

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