Maria Callas

METADE MARIA, METADE CALLAS

Em cartaz nos cinemas, após estreia no Festival do Rio, o documentário Maria Callas pelas suas próprias palavras (2017), um filme de Tom Volf. Seguindo a tradição do gênero, cumpre as convenções básicas de uma cinebiografia ao privilegiar a combinação de depoimentos e imagens raras de arquivo pessoal e, neste caso, também registros da biografada enquanto artista, em suas performances. Um filme simples em seu formato, ousado em seu alcance. Pra quem aprecia não só biografias mas, principalmente, ópera, seu canto e sua encenação, e no melhor estilo.
Uma pesquisa que se aprofunda na vida e na arte da diva, ou la divina, nascida em Nova York em 1923, e mais tarde naturalizada grega. Narrativa composta de várias de suas entrevistas para televisão, trechos de cartas escritas a uma grande amiga, cenas caseiras da sua intimidade nos mais variados lugares, em casa, hotéis, festas, passeios de iates, e trechos de suas deslumbrantes atuações nos diversos palcos por onde se apresentou ao longo de sua notável carreira.
A ópera atravessa Callas e atravessa Maria. Tanto na sua intensa, apaixonante e conturbada vida artística como na vida pessoal, não menos marcada por emoções e paixões. A dualidade dos nomes é expressa pela própria em uma de suas primeiras falas, logo nas cenas iniciais do filme. Maria e Callas, a tomar como signos, podemos aferir soma ou divisão, uma mulher em duas, ou duas em uma. É a partir desse enunciado que se alternam e ordenam as sequências do documentário. Onde vemos e ouvimos suas declarações, em diferentes tempos de sua carreira, a diversos jornalistas, aparecendo sempre muito firme e objetiva, entre sincera, bem humorada e quase arrogante. Em seu estilo diva, comenta e discorre com altivez sobre sua vida artística e a vida partilhada com seu grande amor, o armador grego Aristóteles Onassis. Este, quase tão presente no filme quanto ela, tal a profusão de cenas do casal apaixonado que nos é mostrada ao longo do filme. Mas suas reflexões e revelações mais profundas, sobre anseios e angústias que atestam força e fragilidade de Maria, estão, sem dúvida nas palavras íntimas escritas à amiga e ex-professora Elvira, em diversas cartas pessoais. Que nos são reveladas pela voz emocionada da francesa Fanny Ardant, atriz que já viveu o papel da cantora no drama Callas Forever (2002), dirigido por Franco Zeffirelli.
Mas o que mais interessa ao público apaixonado ou curioso sobre a trajetória de um dos maiores mitos da arte da música é a Callas dos palcos, em cena aberta, no domínio ou sob o domínio das grandes personagens, quase todas heroínas trágicas, do universo das luxuosas encenações operísticas. Intérprete da obra dos eternos mestres, como Verdi, Rossini, Donizetti, Bellini, Bizet, Puccini, Wagner, onde foi Norma, Violetta, Aida, Carmen, Tosca, Anna Bolena, Isolda, Lady Macbeth e tantas outras. Somos brindados pelo resgate de alguns dos trechos mais relevantes da magia da presença cênica e da voz incomparavel, única, de quem foi reconhecida como a maior cantora lírica de todos os tempos. O talento, carisma, magnetismo, perfeccionismo e o glamour de Callas impressionam os que a conhecem ou a desconhecem. De temperamento muitas vezes irrascível, ficou famosa sua briga com o diretor do teatro Metropolitan Opera House, na Broadway, do qual ficou afastada durante anos. Foi estrela de grandes diretores, como Visconti, na montagem de La Traviata, Zeffirelli na montagem de Tosca e Pasolini, de quem foi Medea no cinema, cujas cenas de filmagens o documentário nos mostra.
Com a traumática separação de seu amado Aristo, como o chamava, com quem viveu de 1960 a 1968, mostrou-se seriamente abalada, decidindo abandonar a carreira, já consagrada. Seguiu ainda com algumas apresentações esparsas, a última em 1974.
Maria Callas passou a viver isolada, reclusa, já com fragil saúde, em seu apartamento em Paris. Lá, entre suas gravações, suas memórias e seus fantasmas, seguiu acreditando em uma volta triunfal aos palcos, o que não mais aconteceu.
Nos deixou aos 53 anos, em 1977, devido a um ataque cardíaco, suas cinzas jogadas no Mar Egeu.
Para muitos a maior artista do século XX, o filme de Tom Volf tenta nos devolvê-la viva em todo seu esplendor. "Destino é destino, e não tem saída", frase da artista, dita em uma de suas entrevistas no filme, pode ser que explique a saída tão cedo da vida daquela que existiu, segundo suas próprias palavras, na duplicidade e na dualidade, no conflito e na síntese, das duas personas, Maria e Callas. Que foram, afinal, como essência e resultado, alma e música, uma a expressão da outra.
Ouvir Callas é convite que se renova, suas récitas estão para sempre impressas no sentimento de seus admiradores, ao redor do mundo.
Vale escolher uma. Como sugestão, de Giuseppe Verdi, La forza del destino.

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