Pelé

O MELHOR PELÉ



Em cartaz na Netflix, estreia de fevereiro, o filme documentário "PELÉ" (David Tryhorn/Ben Nicholas - 2021). O melhor filme sobre Pelé, que lhe dá a complexidade devida. Foram produzidos antes, "O Rei Pelé" (1962), "Isto é Pelé" (1974), "Pelé Eterno" (2004), "Pelé, o Nascimento de uma Lenda" (2016).

Pelé foi o maior jogador de futebol do mundo, um monstro sagrado do esporte, um ídolo insuperável, um brasileiro. Não basta, para muitos é pouco.

No filme, um painel com mais de uma centena de gols de Pelé, no Santos e na seleção brasileira. Imagens de jogos, treinos, concentrações em hotéis e viagens. Euforia das torcidas nos estádios. A trajetória de Pelé, desde seu início, em meio já a quase veteranos, a saga do jovem craque a herói nacional.

O filme tem como eixo uma entrevista de Pelé, sentado numa cadeira, onde se alternam planos médios e closes de câmera, que o mostram bastante debilitado fisicamente, no rosto a expressão de uma inegável tristeza. Na abertura do filme, Pelé chega para a entrevista empurrando, quase aos tropeços, um andador. Não mais a agilidade e a força das pernas e dos pés, das ultrapassagens e dos dribles infernais. Pelé deixou para trás centenas de adversários nos gramados. E também ele próprio, o maior atleta do século XX.

Costurado pela entrevista, o filme edita com técnica e inspiração as sequências de imagens de futebol e de política, cenas diversas do país. Intercala com bom ritmo trechos de depoimentos, convergentes, com imagens de arquivo. Constrói uma narrativa dramática intensa que vai além do plano esportivo. Pelé é aqui um personagem exposto em diversos estados, situações e emoções, atleta vigoroso, craque da bola nos gramados, hesitante nas entrevistas, eufórico e confiante muitas vezes, angustiado e depressivo em outras.

Na entrevista base, um momento de uma imagem forte, singela, simbólica, a de Pelé batucando na caixa de engraxate, que o menino Dico usava nas calçadas para ajudar nas despesas de casa.

O filme contextualiza o surgimento, a carreira e o sucesso de Pelé tendo como pano de fundo a história política do Brasil. Explora também sua vida pessoal e amorosa, o assédio pela mídia e também seus contratos publicitários, presença em anúncios etc. Utiliza diversos arquivos históricos de imagens dos acontecimentos do Brasil nos diferentes períodos da trajetória de Pelé.

Juca Kfouri, sobre a vitória na Copa de 1958:
"Pelé emerge como o cara que começa a resolver o complexo de vira-latas do brasileiro. Ele, sim, muda o amor próprio do brasileiro. Não é pouca coisa, simbólicamente".

Gilberto Gil: "É admitido como uma majestade... Ele se torna o símbolo de uma emancipação brasileira".

Benedita da Silva: "Porque aí o menino pobre, o menino da favela, se via ali no Pelé, vibrava com o Pelé, dizia, eu quero ser um Pelé. Era a imagem mais promissora que nós tínhamos de um menino negro pobre".

"Pelé é o nome mágico que atrai multidões".
(Comentarista internacional)

"Pelé, aos 19 anos, se torna o maior jogador de futebol do mundo"
(Jornalista internacional).

Pelé: "Ninguém sabia o que era o Brasil".

Depois da Copa de 1962, e do bi-campeonato mundial, nossa identidade nacional para o mundo passa a ser a adequação Brasil = Pelé.
"— De onde você vem? — Eu venho do Brasil.
— Pelé!"

Veio o golpe militar de 1964. Todo regime político se apropria de seus ídolos populares. No Brasil, na ditadura, com Pelé, não foi diferente. Essa construção se inicia, aos poucos. A busca do regime por enlaçar o ídolo esbarra numa etapa insólita, talvez inesperada, a do insucesso. O Brasil assiste e se assusta com a violenta caçada a Pelé em campo durante a Copa de 1966 na Inglaterra. Onde a dor de Pelé imprimiu tristeza e silêncio no país. Sua primeira derrota em Copa do Mundo. Pelé, finda a competição, anuncia sua despedida de Copas do Mundo.

O Golpe Militar segue implacável e o AI-5 é editado em 1968. Cresce a escalada da radicalização dos anos Médici. Pelé é questionado durante a entrevista  sobre seu conhecimento, à época, com respeito à ditadura, torturas etc. Expressa que não poderia mentir e responder que não sabia, mas que predominava a dúvida sobre o que era verdade ou não. Esteve muito mais excursionando com o time do Santos pelo mundo do que no Brasil. Afirma que muitas notícias contraditórias chegavam até os jogadores.

Pelé: "Sempre tive as portas abertas, todo mundo sabe disso, e sempre me procuravam pra ver se poderia apoiar um lado ou outro".

FHC: "Eu não sei de que lado ele estava no espectro político. Mas Pelé não foi nunca uma pessoa identificada com o Estado. Ele sempre foi muito mais do que isso". (...) "Os feitos de Pelé são incorporados à glória nacional. Ganhe quem ganhar. Tem uma ditadura? Ela ganha também. Tem uma democracia? Ganha também".

Em 1969, o milésimo gol de Pelé. Jogo Vasco x Santos, no Maracanã. "O maior estádio do mundo quer o maior jogador do mundo. Pelé está aí com o gol do século aos pés". (locução de Waldir Amaral). Cenas de grande comoção de Pelé no feito dos 1000 gols, marca inédita no futebol mundial.

Gilberto Gil: "Pelé é uma estrela brilhante que, de repente, fulgura naquele céu negro da vida brasileira. Era isso. Era o símbolo dessa potência vitoriosa brasileira, que apontava pra um país mais justo, um país mais alegre".

Sobre seu encontro com o Presidente Médice após o milésimo gol, em Brasília, Pelé diz que sempre que pode, aceitou todos os convites que recebeu para encontrar pessoas. Nunca foi forçado a nada.

Paulo César Vasconcelos: "Olha-se menos o que Pelé fez dentro de campo e mais o que ele não fez fora do campo. Sua falta de posicionamento passou a pesar mais contra ele".

Paulo Cézar Lima: "Amo Pelé, mas tenho minhas críticas. Pelé tinha um comportamento do nego-sim-senhor. Do negro submisso, que aceita tudo, que não contesta, que não critica, que não julga. Uma opinião do Pelé mexeria muito, principalmente no Brasil".

Juca Kfouri: "Ahhh...com Muhammad Ali foi diferente! E eu bato palmas para Muhammad Ali. O Muhammad Ali sabia que ao ser preso por deserção, ele não corria o menor risco de ser maltratado. De ser torturado. Pelé não tinha essa garantia. Ditaduras são ditaduras. Só quem viveu sabe onde é que arde."

Pelé: "Não era super-homem, não era milagroso, não era nada. Era uma pessoa normal que Deus me deu a felicidade, o dom de jogar futebol".

Durante a antológica Copa do Mundo de 1970, o Brasil vive o auge da ditadura militar e da repressão.

Juca Kfouri: "Desde 1966, do fiasco da Copa da Inglaterra, que a seleção não se encontrava. Ganhar a Copa de 70 virou uma questão de governo". (...) "Foram criados tantos slogans facistóides: 'Brasil, Ame-o ou Deixe-o'. 'Ninguém Segura Este País'. Viveu-se uma euforia nacionalista, no pior sentido do termo, insuflado pela ditadura. Recados eram dados pela ditadura a Pelé: Que era bom ele jogar a Copa".

Delfim Netto:
"Um povo contente, um governo contente".

Pelé: "Sempre vinha proposta pra eu ir falar com o governo. Sempre tinha uma mensagem que era pra voltar." (...) "Fiquei numa angústia, eu não queria jogar a Copa de 70. Eu não queria passar o que eu passei na Inglaterra. Eu fiquei em dúvida, um pouco de preocupação, um pouco de saudade...Essa é a última Copa. Passava a ser um desafio meu essa Copa do Mundo".

México, 1970. A consagração do tri-campeonato do Brasil e de Pelé. As memórias de Pelé jogo a jogo, dúvidas, aflições, emoções, instante a instante. Como uma volta do super-homem, um futebol fulgurante a cada jogo, a cada lance, a cada gol.

Juca Kfouri: "Ganhar era uma coisa inegociável" (...) "Ele precisava de 70. Ele precisava do gol de cabeça na Itália. Ele precisava esmurrar o ar".

Na entrevista base, o choro de Pelé nas  lembranças emotivas sobre a Copa de 70. Fala de medo, angústia, responsabilidade, emoção, alívio. Como grand finale, o jogo da final contra a Itália. Os diversos lances, do início ao fim. Os erros e os acertos, as incríveis e memoráveis jogadas dos gols. As comemorações no gramado a cada gol e as do pós-jogo, lugar da utopia, momento sagrado. Imagens da celebração da vitória e da conquista, da celebração maior de Pelé. Em seguida, as cenas do Carnaval nas ruas do Brasil, a festa da comemoracão do tri-campeonato.

Pelé: "Eu acho que 70 foi mais pro país do que pro futebol. Sem dúvida nenhuma".

Zagallo: "Que é que Pelé quer mais? Pelé foi tudo. Tudo que possa imaginar, o Pelé foi".

Após as imagens de Médice abraçando Pelé e os demais jogadores tri-campeões, a recorrente interpretação da cooptação e da submissão dos jogadores à ditadura.

Juca Kfouri: "Evidentemente que a ditadura explorou aquela vitória. Mas o povo brasileiro nunca imputou ao sanguinário ditador Garrastazu Médice a vitória da Copa do Mundo. Não é a vitória do Médice, é a vitória do Pelé".

Um filme que é tributo a um ídolo, mas que foge da linha reta, opta pelas curvas, avanços e recuos, reconhece o valor inquestionável do atleta e de sua força no imaginário de uma nação. Mas que não evita problematizar seu papel social e o do uso político feito no seu entorno. Filme que escapa da louvação óbvia e nos traz Pelé na sua grandeza e suas fraquezas. Um herói dos gramados que se tornou mito e representação de glórias. E um cidadão brasileiro comum, comportamento igual à da grande maioria do povo do seu país.

Pelé, passado e presente. Numa entrevista corajosa, na fragilidade de sua doença e de seus 80 anos, nos oferece um discurso de humildade, uma sinceridade cortante. No filme, seus feitos e sua trajetória já lendários e distantes até para ele próprio. Nas últimas imagens, junto aos créditos de encerramento, a imagem de Pelé batucando novamente na caixa de engraxate do menino Dico. 

Um filme que reafirma o significado de Pelé, um símbolo de excelência, do que o Brasil já produziu de melhor. Pelé foi o maior jogador de futebol do mundo, um monstro sagrado do esporte, um ídolo insuperável, um brasileiro. Não basta, para muitos é pouco.

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