Mank

 MANK E KANE, CINEMA E PODER




"Mank" (2020), de David Fincher, produção da Netflix, em cartaz há poucos meses, é mais um filme sobre o cinema, mais um filme sobre a Hollywood dos anos 1930, mais um filme sobre os bastidores do glamour, das intrigas, dos conflitos e sobre o poder da indústria, filme sobre o comportamento desregrado, ambicioso, competitivo, marca dos personagens por trás da criação e realização das histórias, roteiros e filmes.
É também mais um filme de extraordinária entrega a um papel complexo pelo ator Gary Oldman, com atuação deslumbrante,  encarnando o jornalista, ex-crítico teatral e roteirista Herman J. Mankiewicz, conhecido como Mank, autor do roteiro do mítico filme "Cidadão Kane", dirigido por Orson Welles.
Gary Oldman, ator que já nos entregou outros trabalhos fascinantes, como coadjuvante em muitos papéis marcantes, e como protagonista em filmes como "Drácula de Bram Stocker" (1992), "Minha Amada Imortal" (1994), como o compositor Ludwig van Beethoven, "O Espião que Sabia Demais" (2011), da obra do escritor John le Carré, e o recente "O Destino de uma Nação" (2017), pelo qual recebeu o Oscar de Melhor Ator, por sua visceral interpretação de Winston Churchill.
"Mank" é um filme mais para iniciados nas histórias dos clássicos do cinema dos USA e mais ainda nos detalhes do lendário "Cidadão Kane". Tem ótimos roteiro, figurinos, fotografia em P&B, trilha musical e montagem, revelando a identidade complexa, tumultuada e pouco conhecida por nós, de seu personagem central, criador da trama de uma dos mais importantes obras do cinema, de todos os tempos.
A estrutura narrativa de "Mank" desvenda a Hollywood dos anos 30 pela visão de Mank, suas bravatas, seu comportamento transgressor, movido à inspiração e álcool, seu olhar crítico e demolidor, suas frases cínicas, precisas e sarcásticas ("— conte a história que sabe") diante das configurações de poder que ditam as normas naquele universo. Suas relações conflagradas, conflituosas, com figuras icônicas e poderosas dessa época, como Louis B. Mayer, William Randolph Hearst, David O. Selznick, John Houseman, Irving Thalberg, Marion Davies e o próprio Orson Welles.
As crises e lutas de Mank pelos estúdios da Paramount e da MGM são várias, encenadas por Oldman em desempenho de muito brilho.
Uma delas, sequência capital no filme, o discurso de Mank no entorno de uma grande mesa de uma festa-jantar à fantasia, na casa do milionário Hearst. Completamente embriagado e cambaleante, Mank, ao redor de astros e executivos dos estúdios, reinventa e narra dramáticamente um roteiro com a história de Quixote, o cavaleiro da triste figura, em sua luta inglória contra os moinhos de vento, relacionando-a com a realidade na indústria do cinema. Momento precioso do filme, que expõe o personagem em sua incontida rota de colisão com as estruturas de poder à sua volta. Misto de decadência e altivez de um personagem, no solo de um grande ator, em alta performance.
Outra delas, já ao final, a forte desavença de Mank com Welles pelo seu crédito como roteirista de "Cidadão Kane". Das 8 indicações do filme ao Oscar de 1942, foi exatamente a de Melhor Roteiro Original a única categoria em que venceu, prêmio dividido pelos dois, Mank e Welles.
"Mank", tem montagem que entrecorta tempos narrativos, usa de flash-backs e advances, em cenas privadas e públicas do protagonista, em seus desacertos com a bebida e também com jogos de apostas, na criação do roteiro de "Kane", no difícil  relacionamento com sua esposa bem como com sua secretária, e nas disputas por espaço e independência autoral no seu trabalho na indústria do cinema. Sua fotografia, inspirada e de rigor técnico, recria texturas e contrastes em cenas que remontam ao clássico.
"Mank" é mergulho nos anos dourados e amargos de Hollywood, através de um personagem entre autor de talento, fanfarrão, herói sarcástico, criador que alterna idealismo e convicções artísticas e políticas.
Um filme duro, áspero, com poucas cenas de emoção fácil. Um filme sobre um filme lendário e sobre os bastidores de sua criação. Um filme que pode ser percebido como um pouco confuso por alternar e superpor suas sub-tramas e ao exigir do público saber previamente sobre histórias de "Cidadão Kane". Um filme principalmente para apaixonados por histórias por trás da invenção de filmes e do cinema.

PS:
O filme "Mank" esteve indicado ao Golden Globe Awards 2021 nas categorias Melhor Filme - Drama; Melhor Diretor; Melhor Ator  Filme - Drama (Gary Oldman); Melhor Atriz Coadjuvante (Amanda Seyfried); Melhor Roteiro; Melhor Trilha Sonora.
Estará, com certeza, entre os indicados ao Oscar 2021 também em várias categorias.

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