A Noite do Espantalho

SÉRGIO RICARDO NA NOITE DO ESPANTALHO


Nas memórias do artista Sérgio Ricardo, de sua obra construída na música e no cinema, uma de suas criações reúne de forma exemplar as duas linguagens. Trata-se do filme musical "A Noite do Espantalho".
Alceu Valença conta que, por volta de 1972, foi à procura de Sérgio Ricardo buscando uma oportunidade para gravar um disco. Sérgio, às voltas com uma violenta censura aos seus discos e à sua música, na época desenvolvia o projeto do Disco de Bolso, com o jornal O Pasquim, e já tinha lançado composições de João Bosco ("Agnus Sei") e de Fagner ("Mucuripe") nos dois primeiros discos do projeto. Ali Alceu buscava a chance de se encaixar e se lançar com sua música.
Sérgio tinha na ocasião concluído o roteiro do seu filme "A Noite do Espantalho", no estilo de um cordel musical, a ser rodado no Nordeste, no sertão de Pernambuco, e ainda não tinha se definido pelo ator para encarnar o personagem principal. Ao ver Alceu diante dele, com os cabelos compridos e desalinhados, de um jeito icônico e espevitado, não hesitou: Você é o espantalho!
Desta forma, Alceu foi transformado no personagem do espantalho, meio protagonista e meio narrador, do quarto filme de Sérgio, que já havia dirigido "O Menino da Calça Branca" (1961), "Esse Mundo é Meu" (1964), "Juliana do Amor Perdido" (1968).
"A Noite do Espantalho" é lançado em 1974, depois de rodado nos cenários de Nova Jerusalém, e traz Alceu como o espantalho rebelde a cantar e semear o espírito da rebelião contra o fazendeiro coronel Fragoso, dono das terras e do Engenho. A trama é contada através de canções compostas por Sérgio e cantadas por Alceu, Geraldo Azevedo e também pelo próprio autor que faz as vozes do retirante e vaqueiro Zé Tulão e do jagunço Zé do Cão, com imagens captadas pela câmera de Dib Lutf, na disputa entre balas e tiros e pelos amores da bela Rejane Medeiros.
Filme indicado pelo Brasil para a disputa do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1975 e que foi exibido na Semana da Crítica em Cannes.
A primeira edição do disco com a trilha musical com 12 canções, e a capa com o retrato do espantalho Alceu Valença na arte psicodélica de Sergio Greco, é de 1974 e a segunda é de 1978. A edição do filme em dvd foi somente feita em 2010.
Filme que mistura elementos de um passado arcaico aliados a traços modernos e futuristas, em narrativa entrecortada, onde um nordeste épico, violento e romântico é narrado na forma de um cordel cantado e encenado, com representações teatrais, invadido por motoqueiros com asas de libélula, enredo de lutas sociais, duelos de jagunços, evocações da seca, numa expressão estética de grande cromatismo e trilha musical com a poética nordestina recuperada em releitura erudita da cultura popular.
Sérgio Ricardo escreve e dirige de modo inspirado uma ópera do sertão com um Alceu Valença que se compõe do personagem de um espantalho, que é também um cantador de feira, é o artista circense, é um profeta místico, e é o próprio imaginário alegórico de um sofrido, aguerrido e esperançoso povo nordestino.
A herança cultural árabe de Sérgio (João Lutf) e o Nordeste bruto e sensível representado em Alceu fazem a alquimia de "A Noite do Espantalho". Que dá seguimento a outras parcerias anteriores na obra de Sérgio Ricardo, como os filmes "Barravento" (1962) e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), encontros de Sérgio e de sua música com os dramas sociais e épicos do cinema de Glauber Rocha.
Em "Deus e o Diabo Na Terra do Sol" Sérgio cantou um Nordeste barroco e imaginário onde "o sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão". Em "A Noite do Espantalho", um outro Nordeste narrado, "quem quiser que venha ver se está tudo certo ou errado, se gostar que faça uso e bom proveito, se não gostar continue deixando tudo esquecido".

Comentários

  1. Seus comentários me deixaram curioso. Vou ver se consigo ter acesso a esse filme. Conseguindo, retorno.

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