A Casa que Jack Construiu


FASCISMO E PERVERSÃO EM LARS VON TRIER

Importa sempre a reflexão sobre a relação entre a visão de mundo de um cineasta e o ponto de vista por ele expresso em um filme que dirige e assina. Invariavelmente, não dá pra disassociar os valores de um diretor daqueles por ele impressos em sua obra.
O filme A casa que Jack construiu (2017), lançado no Festival de Cannes este ano e exibido no Festival do Rio 2018, tem o sabor amargo e hediondo de um tempo que, além da ficção, remete à realidade política que vivemos.
Habitual em seus filmes no trato das pulsões do sexo e da morte, Lars von Trier chega, com sua obra atual, ao limite de sua predileção pelo nazifascismo, desta vez explícito e escancarado, com a celebração da psicopatia, do assassinato, da perversão sádica, individual e coletiva. Seu personagem, um recluso e solitário arquiteto, serial killer psicopata e cruel, que mata mulheres em sequências aterrorizantes, vivido na tela por Matt Dillon, é uma projeção inequívoca dos desejos mórbidos, misóginos e fascistas do diretor. Que desfila agressões, espancamentos, estrangulamentos, tiros, facadas e mutilações, que espirram sangue e sofrimento das vítimas, e além, expressam o culto ao ódio, à tara, à morbidez, à debilidade e à corrosão de valores.
Os assassinatos brutais são acompanhados de discursos elogiosos à morte, à violência e à tortura como expressão pura de arte e arquitetura, como gestos de criação. No clímax dos delírios orgiásticos e confissões exaltadas do assassino, emerge o culto à "obras de arte" de Hitler, Mussolini, Stalin, Idi Amin e outros da vasta estirpe autoritária, com imagens documentais dos horrores dos campos de exterminio judeu e outros massacres, sonorizados com trilhas musicais triunfalistas.
O dinamarquês Von Trier, que já nos deu algumas obras cinematográficas de estilo e qualidade (Dancer in the Dark, Europa, Dogville, Melancolia) chegou ao que vem, na verdade, perseguindo de forma mais radical desde os filmes Ninfomaníaca I e II, a exibição narcísica de uma mente que exacerba e enaltece a violência, acompanhada de uma retórica que a legitima e exalta. Não há no discurso fílmico de Trier e em sua projeção no personagem Jack, lugar para reflexão, distanciamento ou sentido crítico, mas apenas o sórdido travestido de beleza estética, a glamourização da compulsão pela destruição torpe de corpos humanos, a barbárie tratada como ato de criação.
Desta vez, o cineasta surpreende também ao tropeçar na falta de qualidade tanto no conceito como no roteiro do filme, que traz uma narrativa banalizada, arrastada, previsível e repleta de clichês e lugares comuns, com monólogos confessionais do personagem filosoficamente pobres e ralos no seu culto à obsessão por matar, além de cenas e situações dramaticamente mal construídas, artisticamente frageis e toscas, numa trama com falhas básicas, do tipo vítimas ingênuas demais, vizinhos indiferentes, rastros não percebidos pelo descaso de policiais desatentos e incompetentes.
A casa...vai na linha oposta de filmes que trataram de tópicos correlatos, mas com grande sensibilidade e inteligência, como no recente Você nunca esteve realmente aqui, com a brilhante atuação de Joaquin Phoenix no papel de um matador profissional depressivo e angustiado, visto pelas lentes aguçadas e inquietas da cineasta Lynne Ramsay, mesma diretora de obra contundente e comovente sobre o tema do serial killer, Precisamos falar sobre Kevin.
O cinema de Lars von Trier despenca no sombrio e no vazio da integridade e chega ao fundo do poço ou do porão de uma mente habitada pela devassidão requintada e pelo ódio à humanidade.
No filme, a narrativa se reinicia várias vezes, em capítulos, o que é próprio ao cinema de Von Trier. Também o ciclo de mortes se reinicia várias vezes, em paralelo à casa de Jack, com sua construção também reiniciada inúmeras vezes. No ciclo do cinema do autor, o provocador e polemista vai saindo de cena para dar lugar hoje a um surtado, simplório, pouco inventivo e decadente promotor de ideologias do horror.
A casa que Jack construiu desconstrói e revoga a ética em nome de celebrar a compulsão por matar e aniquilar, erguida a status de religião e arte, em tempos de graves crises morais e humanitárias vividas por povos em várias partes do mundo.
Filme onde o culto recorrente ao psicopata e ao extermínio revela tanto sobre o plano do narrado e mais sobre o autor narrador, em seu cinema que identifica a natureza humana como de absoluta e inequívoca amoralidade. Jack pode, enfim, ser visto como um boneco ventríloquo do verdadeiro personagem do filme, seu diretor. Que mais do que nunca, atualiza seus elogios feitos há alguns anos atrás (Cannes, 2011) a Adolf Hitler, seu preferido ícone histórico. Um cinema que reafirma uma ideia.
"Algumas pessoas afirmam que as atrocidades que praticamos na ficção são, na realidade, os desejos internos do que não podemos cometer na nossa sociedade controlada".
Esta, uma fala de Jack durante o filme.
Irresistivel a comparação.

Comentários

  1. Adendo à Crítica:
    A jornada do psicopata Jack ao inferno, como lugar da contação, o diálogo em áudio off com o guia Virgílio, este com suas palavras (quase todas toscas) sobre o amor como virtude máxima, os capítulos do filme como círculos de descida ao inferno, são artifícios do modo de narrar. Mas um filme não se resume ao seu modo de narrar. O conteúdo, a trama, a narrativa, os recursos cênicos e técnicos de sua linguagem estética, são a sua matéria principal, espécie de corpo de delito para o crítico cinematográfico.
    Sem dúvida, Trier buscou se apropriar de elementos da obra de Dante (a Divina Comédia), já que é um diretor que transita bem pela intertextualidade. Mas todos esses recursos de narrar não se impõem nem se sobrepõem à matéria ptincipal do filme, onde se dá a produção do sentido, o seu discurso ético-político.
    A jornada de Jack ao inferno, guiada pelo escritor romântico Virgílio, como artifício confessional para Jack narrar seus feitos de assassino serial killer ao longo do filme, funciona como pretexto para a aproximação simbólica a uma obra referencial, a de Dante. O que não encobre e não se desvia da evidente e inequívoca retórica mórbida, misógina, sádica e fascista do diretor.

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  2. Sua crítica sobre o filme A casa que Jack construiu me fez lembrar o incômodo que senti quando assisti ao filme O Anticristo do mesmo diretor dinamarquês. O incômodo gerado não foi sobre as cenas de violência, de mutilação e outras tão polêmicas na época. Ansiava por assistir a um filme de terror criativo que imaginava tratar da perda, do trabalho do luto, de como podem ser tortuosos e assustadores os caminhos que a negação, a identificação com o objeto perdido, a culpa podem assumir. O incômodo foi surgindo à medida que fui percebendo a perspectiva misógina assumida pelo diretor. Característica que você revela, também, presente nesta obra, como traço etico-politico de Lars Von Trier.
    Traço que como feminista não posso desconsiderar.

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  3. O conentário acima é da amiga Glícia Nick, com formação em Serviço Social, cinéfila confessa, companheira nas lutas democráticas. - Glícia, ótima sua crítica ao filme AntiCristo!

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