Em Pedaços


FICÇÃO E REALIDADE, CINEMA E DESASSOSSEGO

O filme alemão Em Pedaços foi o ganhador do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro deste ano. Na disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro, o
 libanês O Insulto e o sueco The Square foram derrotados na premiação pelo chileno Uma Mulher Fantástica. Enquanto o filme vencedor do Oscar abordou a questão das lágrimas amargas de uma mulher trans diante do preconceito e hostilidade de uma sociedade conservadora, hipócrita e cruel, atuando na crítica ao comportamento, à intolerância com o diferente no campo da identidade de gênero, os demais buscaram retratar outros temas, também complexos, como as questões entre arte contemporânea, galerias, marketing e sociedade (The Square), conflito e intolerância étnica e religiosa (O Insulto) e o ressurgimento, em escala assustadora, do nazismo na Europa, em particular na Alemanha (Em Pedaços). Todos os filmes com seus enredos e personagens localizados nos dias atuais. O Insulto, já comentei aqui no blog em artigo anterior.
O que chama a atenção nestas diferentes cinematografias é a opção em construir narrativas ficcionais que se desenvolvem a partir de fortes vínculos com os contextos sociais de seus países. São dramas roteirizados e encenados com tramas, ações, tensões, conflitos, que estão perpassados pelo chamamento ao mundo real, nos tons os mais diversos, num arco que vai do existencial ao político, onde a verdade, a circunstância e o percurso dos personagens nascem do admirável e inadiável encontro entre ficção e realidade. Seus argumentos convidam à reflexão e à tomada de consciência sobre temas cruciais. De Sergei Eisenstein a André Bazin, não foram poucos os realizadores e os teóricos que pensaram com agudez a fronteira entre o real e sua representação cinematográfica. O real e seu simulacro têm sido o lugar de um duplo, onde se ritualiza diante de nós um cinema que, além da ilusão, nos oferece um outro mundo real, processado e recortado pela linguagem, e que nos chega bem mais forte e ameaçador do que a vida real que acabamos de deixar lá fora.
É o caso em que se enquadra o filme alemão Em Pedaços, do cineasta de origem turca Fatih Akin, que se apropria de fragmentos de uma dura realidade num estiloso formato de thriller politico de suspense, já de longa tradição no cinema europeu. O filme, de inspirada e eficiente construção artística, traz a atriz Diane Kruger, que mereceu a Palma de Ouro de Cannes 2017, numa personagem trágica, que vive em pedaços, na jornada entre o luto e o espírito de vingança, causados por um atentado que matou brutalmente em Berlim seu marido e seu filho. O filme nos assombra com um roteiro que expõe a ascensão de uma violenta extrema direita nazista na Europa, que se disfarça e se esconde em aparentes mecanismos democráticos. 
Em Pedaços é um filme que puxa e aperta o alarme, impacta, comove, assusta, e busca a cumplicidade do espectador, dentro e fora da tela, ao se mover no perigo e transitar na linha e no limite entre ficção e realidade. Violência e barbárie, preconceito e intolerância, cinismo e impunidade, institucionalizados e incontidos, tratados sem happy end, injeção na veia, são a matéria prima de um, urgente e necessário, cinema do incômodo e do desassossego.


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