Baseado em Fatos Reais


POLANSKI E O TERRITÓRIO DA POSSESSÃO

Mais um inspirado Polanski nos cinemas. Baseado em fatos reais (D'après une história vraie, 2017), adaptado do romance de Delphine de Vigan, revisita o território da possessão e da obsessão, tema já tratado em alguns bons filmes.
No elenco, Emmanuelle Seigner, esposa e eterna musa do diretor, veste o papel de uma escritora em crise, após o lançamento de mais um livro, sucesso de vendas, e no difícil e tortuoso processo de descoberta para um novo livro. Eva Green encarna uma jovem e misteriosa fã, envolvente e invasiva. Delphine, a escritora, vulnerável e exaurida, em bloqueio criativo, cede aos encantos da intrusa e atraente Elle, determinada a apropriar-se de sua identidade e a alterar o curso de sua vida e sua obra. A narrativa se constrói na alternância do domínio entre as duas personagens. Num jogo narcísico de espelhos, no cruzamento entre o real e o literário, afloram sedução, voltagem erótica, dependência, conflito, opressão e quebra de limites. 
O roteiro é em parceria com Olivier Assayas, autor e diretor de Acima das Nuvens, que retratou, em belos cenários na Suíça, a tensa relação entre uma atriz, interpretada por Juliette Binoche, e sua assistente, interpretada por Kristen Stewart. O filme de Polanski é próximo do filme de Assayas, lá diretor e aqui roteirista. Um é o duplo do outro. Outra vez, duas mulheres que se consomem em prazer e martírio, num tipo de vampirização, marginadas pela necessidade da criação, lá o teatro, aqui a literatura. Polanski acrescenta, nesta quase outra versão do outro filme, um ritmo de thriller psicológico de suspense, com a marca digital do seu cinema, de fluxo poético e acento mórbido, que carrega fantasmas, com mais um olhar sobre a relação compulsiva entre o artista e sua psique.
Pode-se evocar outros filmes como referências ao tema. Um deles, Persona (Quando as mulheres pecam, 1966) do mestre Ingmar Bergman, onde Liv Ullmann e Bibi Andersson encenam duas personagens numa ilha deserta, que se relacionam entre silêncios e memórias, na cumplicidade e no embate. E há, principalmente, vestígios de Louca Obsessão (Misery, 1990), de Rob Reiner, baseado em Stephen King, onde um escritor famoso, vivido por James Caan, é aprisionado pela sua fã número 1, apaixonada, obsessiva e indignada com seu último romance. Que deu o Oscar de melhor atriz a Kathy Bates.
Neste seu novo filme, intenso, atordoante, com alguns clichês e previsibilidades, Polanski não consegue superar a excelência da dramaturgia de seus últimos, O Escritor Fantasma, Deus da Carnificina, A Pele de Vênus. Mas segue na primazia estética de intensa sedução de seu cinema e seus personagens, tantas vezes perturbadores, atormentados, insanos, complexos, trágicos. Que habitam a região do delírio e do desvario, onde se devoram e tentam nos devorar.

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