Visages Villages


UM RASCUNHO PESSOAL, PRÓPRIO E DO OUTRO.

A cada ano surgem exemplos do aprimoramento do
filme documentário, diverso e variado, na origem, propósito, concepção e linguagem. Em cartaz nos cinemas, o francês Visages Villages, da veterana Agnès Varda, é um filme marcante por sua qualidade e sua diferença em relação a um padrão convencional.
Vimos recentemente outras obras documentais também de grande vigor e paixão, escritas e filmadas pelas lentes da subjetividade, que marca a aventura de desbravar e recortar a objetividade do mundo, do tempo e da vida reais. Poéticos, políticos, corajosos e instigantes, nacionais e internacionais, como Era o Hotel Cambridge, Um Filme de Cinema, Uma Verdade Mais Inconveniente, No Intenso Agora, Human Flow, Lumière! A Aventura Começa, Cora Coralina Todas as Vidas, Torquato Neto Todas as Horas do Fim. Três deles, já comentados aqui no blog. Nesse conjunto de obras verifica-se a ampla diversidade de escolhas e métodos de seus autores documentaristas.
O filme documentário nasceu nos anos 1920, definido por John Grierson, precursor do documentário inglês, como uma interpretação criativa da realidade. Que avançou na linha do tempo, com inovações e rupturas no conceito e na linguagem, buscando aproximar-se cada vez mais das histórias do cotidiano. Tornou-se necessário e imperioso imprimir em som e imagem relatos sobre a aventura humana, e em alguns casos, mais do que isso, desvendar a própria magia do ato de narrar. 
Visages Villages é mais um filme com a proposta de documentar o mundo do outro, sua aldeia e seu universo, dramas, sonhos e memórias, crenças, valores, identidade e cultura. E seguindo uma tendência importante, ir além e revelar os mistérios da construção do próprio filme. Para um tipo de cinema documentário, passou a importar o compromisso em identificar o projeto ético em que se funda o filme. Nesse espectro de variantes, de um cinema múltiplo que tem se reinventado, buscando aliar informação, registro e testemunho, Visages Villages é um documentário que tem como seu principal objeto a ação de seus próprios realizadores, a cineasta Agnès Varda e o jovem fotógrafo JR protagonizam a obra que assinam. Percorrem, num road movie, vilarejos do norte da França em busca de personagens anônimos, pessoas simples, que se disponham a ser fotografadas e ter suas fotos publicadas em ampliações tamanho gigante, como murais fotográficos, expostos nos próprios cenários naturais onde vivem. Dessa forma, rostos e corpos vão se transformando em retratos impressos nas paredes das casas, vilas, fábricas, igrejas, onde a vida real, em instantes improvisados ou encenados, é projetada estampando atores sociais, retirados de suas pequenas histórias, agora valorizados e amplificados, em cada lugar visitado pelos artistas. Anônimos que só existem como personagens documentais, na medida em que sua representação é construída por Agnès e JR. O foco do filme é, portanto, a sua interação com os criadores, e principalmente o resultado a ser alcançado, a arte dos artistas. Durante o filme vemos os dois não só nas performances criativas mas, sobretudo, como atores, encenando para a câmara seus preparativos, intenções, dúvidas e reflexões. Muita conversa, descontração, emoção, rigor profissional, bastidores da produção das fotos e do próprio filme são a matéria do roteiro, que se constrói aos poucos.
Um filme que se desvenda mostrando seus segredos e mistérios. Um pouco auto referente, na tradição da fotografia encenada, e do cinema verité, onde a verdade é construída para a câmera. 
Na sequência final, a espera emocionada por Godard define dramaticamente o cinema como a necessidade do encontro. Em Visages Villages, o espaço entre o outro e o próprio se misturam, num rascunho virtuoso, afetuoso, solidário, inacabado.

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