AZYLLO MUITO LOUCO, 50 ANOS DEPOIS 


Clássico de Nelson Pereira dos Santos, "Azyllo Muito Louco", de 1970, baseado em "O Alienista" de Machado de Assis, uma experiência renovada, inquietante, surpreendente assistir o filme hoje, nos anos Bolsonaro.
Fui contemplado com dois dvds como recompensas da benfeitoria "Continua, Meu Estação", da qual participei em 2020. Fui recentemente buscar os filmes, "Azyllo..." entre eles, com cópia restaurada, podendo reassistí-lo tantos anos depois.
Umberto Eco, romancista e semiólogo, conceituou sobre a "Obra Aberta", título de um dos seus livros, uma coletânea de artigos acadêmicos. Entre as considerações de Eco, "toda obra de arte é aberta porque não comporta apenas uma interpretação".
A recepção de uma obra, seja ela qual for, é mediada por vários fatores, várias determinações. São muitas as teorias sobre a percepção estética, formuladas por alguns estudiosos. Tempo, lugar, formação cultural, histórias de vida, visão de mundo, tudo interfere e define o olhar, a compreensão, o entendimento.
O que interessa aqui é que "Azyllo Muito Louco", feito há 50 anos, com sua pegada surreal, visto hoje em nosso contexto de tempo e lugar nesse Brasil prá lá de surreal, faz do padre Simão Bacamarte um personagem com contornos típicos da era bolsonária. 
História original de um conto de Machado, na livre versão cinema de Nelson, "O Alienista/ Azyllo.." quebra as fronteiras entre a sanidade e a loucura, num argumento que faz a sátira da psiquiatria, da religião, e apontava também críticas veladas à ditadura militar brasileira. 
Um hospício é construído para que sejam internados os loucos de uma cidade, uma província à beira-mar, no século XIX, sob as ordens de um padre recém chegado, alienista/ psiquiatra/ alucinado/ obsessivo, e durante a narrativa e seus percalços se alternam os juízos e decisões sobre quem são os loucos e quem são os sadios, quem deve ficar dentro ou fora das grades, numa alegoria cômica e demolidora sobre o poder, o controle, a doença, a normalidade, a resistência.
O filme atravessa questões que continuam cada vez mais atuais, na discussão que propõe sobre uma sociedade à reboque de uma liderança e comando que ultrapassam limites, onde se misturam o temor, o fascínio, a entrega, o domínio, e se instauram a quebra e a perda da razão, o delírio, a loucura coletiva.
Um filme delicioso, que alia sátira, deboche, crítica, fruto da imaginação literária Machadiana, o rigor cinematográfico do mestre Nelson Pereira, câmera e fotografia com planos sequências, quadros e ritmo de imagens no olhar de um artista exímio, Dib Lutf. 
Um elenco primoroso com ótimos desempenhos de Nildo Parente, Isabel Ribeiro, Leila Diniz, Ana Maria Magalhães, Irene Stefânia, Nelson Dantas, Arduino Colasanti, Manfredo Colasanti, Luiz Carlos Lacerda, entre outros, com cenas rodadas nas belas paisagens históricas, românticas, sensuais e oníricas de Paraty. 
Filme que participou do Festival de Cannes 1970, tendo recebido o prêmio Luis Buñuel, que nos faz orgulhar de um cinema brasileiro muito especial, o cinema novo, uma revolução estética, no estilo e no espírito,  que dialogava de forma visceral com a arte e a política.
"Azyllo Muito Louco", um filme de época, um filme atemporal, que se atualiza ao se rever, um filme que aponta para nossa identidade, nosso caráter, nossa insanidade, de um povo e de um país. 
Um Brasil que se repete.
Um grande prazer de rever!




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