Paris,Texas

PARIS, TEXAS. INCOMUNICAÇÃO, MEDIAÇÃO


A incomunicação, marca do isolamento dos dias atuais dos anos 2020, tem filmes símbolos.
Um deles é Paris, Texas (França/Alemanha, 1984), do diretor Wim Wenders, baseado num roteiro original do dramaturgo norte-americano Sam Shepard.
Emoldurado pela trilha sonora árida, cortante, da guitarra de Ry Cooder, um filme sobre feridas da alma e cicatrizes abertas, vencedor da Palma de Ouro de Cannes e do Prêmio Bafta de melhor direção.
Nos tempos de incomunicação pandêmica, solidão, depressão, afasia, desencontro, desencanto, são todos elementos que cercam e atravessam a vida confinada de muitos.
Confinamentos sociais isolam pessoas no mundo, confinamentos pessoais isolam pessoas dentro de si. A incomunicação é a fechadura social e pessoal em tempo de crise, tanto a de mobilidade como a de sentimentos, memórias, culpas, perdas.
Em Paris, Texas Harry Dean Stanton é Travis, personagem dilacerado pelo passado, encontrado vagando pelo deserto do Texas, com seu boné vermelho, perto da fronteira com o México. Desaparecido há 4 anos, é resgatado por seu irmão, vivido por Dean Stockwell, em estado de fraqueza, maltrapilho, com amnésia e afasia. Isolamento social e pessoal.
Após difícil interação, incluindo fuga, nova busca e reencontro, é pelo irmão levado, em tumultuado percurso de carro, para sua casa em Los Angeles. No caminho Travis confessa que andava pelo deserto na busca de chegar a Paris, Texas, lugar desenhado num mapa que carrega, designando-o como possível lugar de sua origem, e onde diz ter comprado um terreno.
Finda a viagem, já em LA, o reencontro com seu filho Hunter, de 7 anos, abandonado e entregue aos tios por sua mãe, Jane, personagem que aparecerá depois.
A reaproximação de pai e filho, após fase inicial de desconfiança do menino, vai construindo aos poucos uma profunda relação afetiva entre os dois, e a necessidade do amor completo é impedida pela ausência de Jane. Travis é o personagem trágico, sua redenção completa só será possível se voltar a ser amado, o que só será possibilitado com o reencontro da mulher, para que se efetive a recomposição da família, o retorno da ligação perdida Travis-Jane-Hunter.
Esse percurso doloroso será construído por diversas representações e imagens.
A primeira delas se dará através da projeção, na casa do irmão Walt, de um velho filme caseiro em super 8, onde a família unida em amor transborda na tela, num passado de felicidade. A primeira mediação do filme é realizada por essa projeção, a vida real de um passado longínquo é mediatizada simbolicamente nas imagens que a trazem de volta em forma de representação. Na tela muda, sem som, a memória do real que existiu mas escapou, ali o primeiro episódio de incomunicação entre presente e passado, entre real e fantasia. Ali, a presença de Jane, pela fulgurante Nastassja Kinski, projetada na parede, tão perto, tão longe, fora do alcance de Travis.
O reequilíbrio da relação entre pai e filho os coloca na estrada, na pista deixada pela mulher, que todo dia 5 faz um depósito bancário numa conta aberta para o filho, numa agência de Houston, Texas. Travis aluga um carro com dinheiro pedido ao irmão, pega Hunter no colégio, conversam, acertam planos e partem atrás de Jane. Chegando no shopping onde fica o banco se separam, se dividem para o cerco, um em cada uma das entradas. Nessa sequência, a mediação agora é entre pai e filho, e se faz através de um aparelho de walkie-talkie, onde se falam por meio eletrônico, de forma mediatizada. Novamente um aparelho transmissor para através dele atingirem o alvo, o encalce de Jane. Após minutos de tensão ela é vista e percebida por Hunter, já de saída, dentro de seu carro vermelho, com sua imagem refletida no vidro da janela, uma nova imagem e sua representação.
Daí segue a perseguição, carros que se movem em velocidade por rodovias, atrás de um destino misterioso e desconhecido.
O lugar de chegada é uma casa de Peep Show, local onde mulheres fazem o streep para homens que só podem vê-las em cabines individuais, separadas por janelas, onde a comunicação do homem é feita por um telefone.
Em minutos Travis já está diante de Jane, numa das cabines, através de novas mediações de som e imagem. Devastado por sua paixão, da qual nunca conseguiu se livrar, só ele a vê, atrás de uma vidraça, ao contrário dela que não tem a visão do cliente. No lugar da imagem dele o que ela vê é o espelho de si própria, em seu vestido vermelho, do qual sugeriu e insinuou despir-se, mas encontrou a recusa de Travis.
Ali um novo encontro entre presente e passado onde ele, no aparente esfriamento da paixão, conta a história de seu amor dilacerado por uma mulher, como se fosse outra, e não a mesma que ouve sem saber ser ela a personagem anônima da narrativa.
Mediações, representações, a incomunicação no limite entre o real e a fantasia, entre os tempos ali superpostos, o tempo da história, o tempo da escuta, o tempo do narrado. A tecitura do drama vai escalar níveis densos de suspense e comoção, até que Jane identifique Travis. A expiação de ambos se dará na forma de relatos confessionais, na exposição de culpas, infortúnios e anulações, até quando ele pede a ela que apague a luz, desfazendo o espelhamento de Jane, o que permite que os dois se vejam. Ela vai até ele, no transe da descoberta, no limiar do toque na barreira de vidro, de um lado um, do outro lado o outro, impedindo o contato, no interdito da comunicação direta, onde o pleno da revelação se dá por nova mediação.
A decisão final de Travis é a de ir embora, mas pede a Jane que vá ao encontro do filho, que espera pela mãe. Dá a ela o endereço do hotel onde está Hunter.
No tempo paralelo à conversa de Travis e Jane no Peep Show, um gravador reproduz uma fita de áudio no quarto do hotel. Nela também a voz de Travis, nela a despedida do pai ao filho, sua declaração de amor e a afirmação de que Hunter deve ficar com Jane, que irá ao seu encontro. Nova mediação, a mensagem do pai ao filho deixada num gravador.
Na cena seguinte, já noite, o abraço amoroso, emocionado e intenso entre mãe e filho, no quarto do hotel. Lá em baixo, à espreita, o pai dentro do carro olha pra cima e vê, mediado pela janela do quarto, os vultos iluminados e refletidos da mãe abraçada ao filho.
Travis liga o carro e parte em seguida. Para onde, não se sabe. Talvez Paris, Texas. Lugar desenhado no mapa que carrega, e que imagina ter sido onde foi concebido por seus pais. E no qual adquiriu um terreno para viver seu sonho de amor com Jane. Junto com ele, segue a trilha cortante da guitarra de Cooder.
Paris, Texas, um filme marco da incomunicação e que carrega um dos personagens mais trágicos do cinema.
No início Travis seguia em frente, um peregrino à deriva, obcecado na busca de um lugar imaginário, cruzando a aridez e o calor escaldante do Texas. No final, Travis segue novamente em frente. Como no início, levando na alma o deserto.

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