Coringa

CORINGA, O AVESSO DO HERÓI


Intrigas e guerra de bastidores da indústria cinematográfica, entre a Marvel e a DC/Warner, fabricam o jogo de opiniões e marketing atualmente na mídia, disputam quem é mais e melhor nas super-produções de super-heróis. Nessa cantilena, fazem um debate que torna-se um filme fora do filme, com roteiro e atuações de muita grana e poder, mas sem muito brilho. Na onda do Coringa (Todd Phillips, 2019), vencedor do Leão de Ouro, de Veneza, essa discussão tenta alcançar o protagonismo acima do filme.
Críticas também têm sido desferidas, a principal delas a do filme ser uma apologia da violência social desmedida nas ruas, com o personagem sendo percebido como símbolo da revolta dos humilhados e ofendidos, dos oprimidos de Gothan City, em sua compulsão por matar yuppies e famosos.
Na estreia do filme nos EUA, grupamentos policiais foram destacados para fazer a guarda de sessões em Los Angeles e Nova York. Em algumas redes de cinemas, houve a proibição de uso, pelos fãs, de máscaras do Coringa. Tudo pode, sem dúvida, ser examinado e considerado, mas Coringa é, acima de tudo, um filme sobre o vazio na cultura e na existência humana, onde a violência, mesmo glamourizada, é mostrada como resultado, seja de uma perturbação mental, seja de uma grande patologia social.
De tudo, o que importa é a discussão sobre a qualidade do filme e sobre quem faz o melhor cinema, o que seduz e impacta, o que opera com a sensibilidade, a invenção, a criação autoral e a inteligência.
Aí, Martin Scorsese, que está também no meio da polêmica e do tiroteio das cias., é quase imbatível dentro da cinematografia norte-americana, no lugar entre o cinema comercial e o cinema de arte, de refinamento estético. E suas raízes estão aí, de Taxi Driver a O Rei da Comédia na arquitetura desse Coringa denso, alegórico, fantasioso, dramático, que faz a crítica da espetacularização midiática, aponta a divisão de classes, e trata a violência como surto de insanidade, com um pé no prosaico e outro no poético.
Um filme forte, para gostar ou não gostar, com esse admirável ator Joaquin Phoenix, ele um verdadeiro e absurdo coringa do cinema, a cada filme melhor, numa quase obsessão pela entrega e construção de seus personagens. Já o vimos nessa curva de excelência muitas vezes, entre o cool, o low profile e o overacting assombroso. Em Gladiador, Sinais, A Vila, Johnny e June, O Mestre, Era Uma Vez em NY, O Homem Irracional, Ela, Você Não Esteve Realmente Aqui, A Ele Não Vai Longe, entre outros complexos, atormentados, dilacerados e magníficos Phoenix. E nesse Coringa, talvez a perfeição. 
Os 60 segundos da cena da escadaria, com a tomada em contra plongée, onde Coringa desce nos passos de uma magnífica dança, saltitante,  flutuando, de corpo e alma, absolutamente tomado de energia visceral, tal qual um pássaro preparando seu vôo, já se inscreveu entre as mais belas, e extraordinárias sequências que o cinema já produziu. É a cena divisória, a partir da qual a violência  irrompe e passa a ser desmedida no filme.
Na disputa das cias. do negócio do cinema, sobre quem tem a melhor e maior patente sobre super-heróis, nesse caso o golpe potencializa o marketing do filme mas não alcança sua tela, o espetáculo transcende.
Coringa não é super-herói, ao contrário, é o seu avesso, o anti-herói trágico, clássico, típico.
Na sequência do estúdio de TV, quando é entrevistado pelo apresentador Murray Franklin, vivido por Robert de Niro, diz, na sua implacável consciência: " -- Todos vocês, o sistema que sabe tanto, vocês decidem o que é certo ou errado, assim como vocês decidem o que é engraçado ou não".
O filme, longe dos graphic novels, não entra no universo dos super-heróis, sua dramaturgia abarca o limite tênue entre sanidade e insanidade, lucidez e loucura, ação e reação, liberdade e prisão, agonia e gargalhada, vida e morte. Um personagem que é libelo sobre a clausura do anonimato e da exclusão social, sobre o delírio e a busca desesperada pela dignidade, pela compaixão, pelo afeto e pelo amor. E que segue, no imaginário, como o eterno joker, sombrio e compulsivo em sua amargura, mas rindo por último, a incômoda risada do icônico e emblemático palhaço.

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