Varda por Agnès

Na França há uma forte tradição de um cinema de arte, de um cinema humanista e de um cinema da delicadeza. Uma representante desse cinema é Agnès Varda. Cineasta e mulher. Que começou a filmar nos anos 1950 e nos deixou aos 90 anos, em março passado. Seu último filme, Varda por Agnès (2018), acaba de estrear por aqui.
O Festival de Cinema de Cannes de 2019, o mais importante deles todos, está homenageando Agnès Varda em seu cartaz. Lá está a cineasta numa cena de filmagem de seu primeiro longa, de 1954, La Pointe Court. Varda é transformada no ícone desse festival, na sua imagem, Cannes faz sua declaração de amor a Varda.
Nos anos 1960 a França iluminou o cinema do mundo com a Nouvelle Vague. Resnais, Chabrol, Godard, Truffaut, Rivette, Rohmer, cineastas, quase todos oriundos da revista Cahiers du Cinema. Junto deles estava uma mulher, de origem belga, a jovem Agnès Varda. Casada com o cineasta Jacques Demy, Varda, além de ser a única mulher na Nouvelle Vague, tinha outra marca pessoal. Se os outros buscaram uma ruptura com o cinema francês anterior, dos anos 30 e 40 -- o cinema de Jean Renoir, Marcel Carnè, Varda não seguiu esse lema. Ao contrário. Seu cinema, que precedeu a Nouvelle Vague, herdou e renovou a característica e a tradição dos antigos mestres, de um cinema de afeição, um cinema de afetos. Presente em seus clássicos Cléo das 5 às 7 (1962) e Le Bonheur / As Duas Faces da Felicidade (1965). 
Em suas realizações também destaques para Uma Canta, a Outra Não (1977), trama envolvendo duas garotas no auge do movimento hippie, Os Renegados (1985), vencedor do Leão de Ouro do Festival de Veneza, Jane B. Por Agnès V. (1987), um perfil da atriz, cantora e símbolo fashion Jane Birkin, e o documentário Os Catadores e Eu (1999), um retrato da sociedade francesa dos desvalidosA obra de Agnès Varda é diversa, dezenas de filmes, cerca de 50, entre a ficção e o documentário. Com um ponto essencial que define seu cinema. Um cinema de afeto, um cinema amoroso que quer filmar o outro, conhecer o outro, a vida do outro, o mundo do outro.
Importante destacar seus três mais recentes e últimos trabalhos, filmes documentários que vão na direção da busca do real, de sua representação e de sua encenação. Filmes com um tom autobiográfico, onde ela filma e se torna tb personagem de si mesma e do seu encontro com os outros.
Em As Praias de Agnès, de 2008, ela diz: "Se você abrir uma pessoa irá encontrar paisagens. Se me abrir encontrará praias". Ela diz também: "As praias não têm idade, elas funcionam como máquinas do tempo". Esse o mote do filme. Varda monta um ensaio subjetivo sobre sua vida e obra numa viagem de volta às praias onde viveu, as praias de seu passado, pelos vários recantos da França. Faz um álbum de família, um álbum de amigos, um álbum de encontros e reencontros, um álbum de amores. Um álbum de retratos de sua vida onde as praias estão ao seu redor, à sua volta e dentro dela própria.
Visages, Villages, de 2016, já comentado com artigo neste blog, foi indicado ao Oscar de melhor documentário em 2017. Um rascunho pessoal, próprio e do outro. Nesse filme Varda e o fotógrafo JR fazem um road movie pelo norte da França com a proposta de documentar o mundo de pessoas anônimas, o mundo do outro, em suas vilas, aldeias, em seu universo de culturas, crenças, dramas, valores, fantasias e sonhos. Varda e JR protagonizam o filme que assinam. Fotografam pessoas simples, pequenas em seus mundos, ampliam suas fotos em tamanho gigante e transformam em enormes retratos impressos nas paredes e muros, de suas casas, fábricas, igrejas. Pessoas que são retiradas de suas pequenas histórias e estampadas, valorizadas, amplificadas nos próprios lugares onde vivem. Um filme que celebra o encontro com o outro, um ensaio poético e amoroso, onde está a realidade e sua representação.
Agnès Varda partiu há pouco, com 90 anos de vida, foi para uma praia mais distante. E deixou um último filme, seu aceno final, Varda por Agnès. Nele, faz uma revisão de toda sua obra, conta com maestria os enigmas e segredos de sua cine-escritura, como ela chama o seu modo de narrar. O filme é uma master class de direção de cinema e suas escolhas éticas. Mais uma vez, um filme de afetos, retratos e de memórias, sobre seu amor pelo cinema, uma espécie de carta de despedida ao seu público.
Varda revela e explica as três palavras chaves de seu cinema. Inspiração, a primeira delas, definida como as ideias que acendem o desejo. Criação, a segunda, a sua arte de fazer o cinema. Partilhar, a terceira, compartilhar, com o outro, tanto ao fazer o filme, num ato coletivo, como com seus personagens na cena, e o compartilhar com o público, a quem entrega seu trabalho. Essas as palavras com que Varda define a razão de seu cinema.
Há uma poética imagem em Visages, Villages, recuperada em Varda por Agnès, de sua paisagem preferida, a de uma praia que, num plano aberto, ocupa toda a tela. Nela, Varda e JR contemplam o mar. E a imagem vai se dissolvendo, sumindo, sendo varrida aos poucos, tomada e atravessada por uma bruma forte, espessa, incessante. Talvez uma metáfora da vida que vai se esvaindo, desaparecendo. Ou do cinema, de um filme, que começa e acaba, que tem início e fim, termina.
E sobre essa imagem, onde tudo vai se dissipando, Varda fala do seu eu profundo: "A última palavra é sempre do mar, da areia e do vento".

Comentários

  1. Belo texto sovre uma aurora provocadora. "Le Bonheur", "As duas faces da felicidade" me virou pelo avesso. E deste texto recolho a frase sobre paisagens, sobre pessoas: "Se voce abrir uma pessoa ira encontrar paisagens". Levei.

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  2. Esse filme me arrebatou. Esse e todos dessa figura maravilhosa que é a Agnès Varda.

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