Os Invisíveis

               INVISÍVEIS, PELA SOBREVIVÊNCIA

Os Invisíveis é o filme alemão da hora, em cartaz, mais um dos que vão na direção de prestar contas à História sobre o flagelo do regime Hitlerista. Com diferentes argumentos e pontos de vista, alguns deles podemos citar, marcantes, como A Queda (2004), Uma Mulher Contra Hitler (2005), A Fita Branca (2009), Lore (2012), Phoenix (2014), Labirinto de Mentiras (2014), 13 Minutos (2015). Neste país, as produções cinematográficas se sucedem, buscando reabrir as feridas do totalitarismo que jogou a Alemanha e o mundo no terror do nazi-fascismo. Somente desse modo, a expiação de um passado que não se quer de novo pode resultar em um futuro livre do retorno a esse pesadelo. No Brasil, ao contrário, o fantasma da volta à ditadura segue na espreita, resultado de não se ter enterrado ainda em definitivo o espectro do violento regime militar que assolou nossa alma e nossos corpos, e que volta e meia reaparece com a ameaça de seu retorno. A questão é como lidar e tratar sua memória e seus ossos no armário, seja através do cinema, da educação, ou de outra linguagem simbólica, que construa o olhar crítico severo e indispensável.
Os Invisíveis, dirigido por Claus Räfle, produção de 2017, adota um formato não muito usual para contar sua história, um misto de documentário com proeminência na encenação ficcional, a serviço de ilustrar os dramas relatados por quatro personagens, judeus alemães, reais sobreviventes do assassinato de milhares de seus compatriotas.
Na Berlin em guerra de 1943, os nazistas se orgulhavam e notificavam ter dado fim por completo aos judeus. Só que, às sombras, cerca de 7.000 deles se escondiam em refúgios clandestinos, com ajuda de famílias alemãs que ousavam desobedecer às ordens oficiais da delação, do abuso autoritário e do colaboracionismo. Destes, cerca de 1.700 conseguiram sobreviver, através de uma impressionante submersão, que os tornou invisíveis aos olhos e às estatísticas do extermínio. Resistindo, inclusive, a judeus infiltrados, sob a direção da Gestapo, que prestavam serviços de delação, em troca do benefício de terem seus parentes poupados. Quatro destes sobreviventes vêm agora contar suas histórias em depoimentos raros, intensos e emocionantes, num estilo narrativo que classicamente se intitula docudrama, que remete à ideia de um documentário dramatizado. Sem pretender um vôo cinematográfico de grande obra estética, o diretor nos brinda com um relato preciso, contido, certeiro, emotivo onde as falas testemunhais dos sobreviventes se misturam à imagens de representação dramática encenadas nos sombrios cenários históricos da Berlin nazista, com a oportuna inserção de imagens documentais de época da cidade, suas ruas, calçadas, avenidas, transportes e presença militar ostensiva. Dessa forma, os já idosos em seus aproximados 90 anos, Hanni, Cioma, Eugen e Ruth, descortinam através da memória sua experiência crucial de jovens entre 17 e 20 anos, que viveram a dificil jornada da auto anulação de suas próprias identidades, na louca e incrivel aventura de sobreviver a cada minuto, hora, dia, noite, semana, mês, anos seguidos, entre riscos, limites e incertezas. Histórias únicas e pessoais, cada um deles com a sua, mas envolta por um forte coletivo, parte de uma sociedade se movendo na impostura das trevas e acreditando nos valores iluminados da generosidade, da dignidade e da liberdade
Os Invisíveis escolhe um modo de narrar onde se destacam tanto os que contam como os que representam o drama de viver e sobreviver no absurdo e no imponderável. Velhos judeus em suas palavras e por suas próprias vozes, derradeiras que restam, combinados a jovens atores e atrizes que nos oferecem o cinema possivel, com trechos de um quase thriller de suspense, em cenas, diálogos, figurinos, locações, planos, fotografia entre o claro e o escuro, na recuperação imaginada das histórias narradas.
O equilíbrio entre o tempo documental e o tempo ficcional é o segredo dessa narrativa que, em linguagem híbrida, articula o artístico e o pedagógico, cumprindo com eficiência esse propósito. O que, se por um lado pode comprometer com seus cortes, momentos de alta temperatura da representação dramática, por outro nos dá a permanente sensação de estarmos diante da vida real, com sua verdade absoluta, em sua extraordinária vivência, dolorida, angustiada, trágica e inquestionável.
Sabemos hoje que muitos judeus desconheciam e mesmo ignoravam a própria extensão do holocausto perpetrado nos campos de concentração nazistas. Quase ao final do filme, um dos seus personagens sobreviventes afirma que sabia-se que os nazistas não gostavam de judeus, mas que era inimaginável a política e a escala do extermínio.
Essa a questão que desconcerta e assombra para além do tempo e espaço. E que projeta ao mundo a imensa dúvida sobre o destino de povos e nações que ainda convivem com a ameaça da quebra da casca do ovo da serpente. E essa, quando se solta da casca, com que velocidade e voracidade comete o seu ataque, e quão forte e mortal o seu veneno e seus tentáculos?
A lição dos invisíveis nos deixa a profunda e inadiável reflexão sobre a importância e a urgência de celebrar e defender, de modo intransigente, a sobrevivência, a paz e a liberdade, a cada minuto, hora, dia, noite, do resto de nossas vidas.

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