Esplendor


NAOMI KAWASE, CINEMA DA DELICADEZA

Esplendor (Hikari), novo filme, em cartaz, da cineasta japonesa Naomi Kawase, exibido no Festival de Cannes em 2017, mostra a aventura poética do cinema feito para os que não têm olhos para ver. A reinvenção do olhar cinematográfico, que se constrói pela imaginação, onde a tela escura dos que não enxergam é iluminada através das palavras, guias de enredos, histórias e emoções. 
A jovem Misako é a escritora que elabora os áudio filmes, legendas orais em áudio descrição, que traduzem e narram as imagens dos filmes que são transmitidos para plateias de deficientes visuais, amantes cegos e emocionados das narrativas do cinema. O impacto produzido pelos textos de Misako, narrados e mixados com os sons originais de músicas e diálogos dos filmes, resulta no encantamento dos que assistem, substituindo os olhos pela escuta. 
Roteiro original, que opera mais uma vez no terreno habitual da cineasta, o da paixão e da delicadeza. No desenrolar do filme, o encontro e o envolvimento mágico da jovem com um fotógrafo, mais velho, Nakamori, em processo de perda progressiva da visão. Nele, a angústia de não mais poder fotografar, criar imagens com sua Rolleyflex, sempre pendurada em seu pescoço. Na ousadia da diretora Naomi Kawase, imagens fora de foco, de enquadramento, distorcidas, que expressam a agonia visual do personagem, se aliam à outras imagens de paisagens exuberantes, que nunca serão vistas pelos que não possuem mais o poder do olhar.
Predominam planos de câmera subjetiva, a destacar olhares e passos dos personagens, e mergulhar na subjetividade das vidas de cada um. 

Momentos tensos e sensíveis surgem nas sessões para teste de qualidade dos áudio textos, quando os deficientes, em grupo de discussão, pedem que os textos contenham apenas a descrição das imagens. Criticam duramente os trechos com interpretação das cenas, vista como uma espécie de usurpação simbólica, a interdição do imaginário. Vão se revelando à jovem escritora, pouco a pouco, o ímpeto e a argúcia destes que vêm sem os olhos, mas com a exigência do sentimento. Exigem a liberdade do sentir, interpretar, imaginar.
Na sequência final, o esplendor e a beleza de um lento travelling de câmera pelos rostos de um público emocionado ao fim de uma projeção. Ali, o poder e o feitiço do cinema, capaz de transformar e transmudar olhos fechados em abertos. Em seu todo, a presença do duplo, nas plateias, nós e eles, dentro do filme e fora dele, igualados no objetivo e no fascínio em assistir cinema, e na pergunta essencial, o que vemos num filme?
Cinema de grande humanidade, de estética primorosa, de levada poética e filosófica, que ressalta a ética da superação, persistência, esperança. 
Da diretora, suas obras anteriores já expressaram o olhar e a alma feminina que marcam suas historias, que dão destaque à sabedoria da natureza e da cultura ancestral de seu país. Foi assim em O Segredo das Águas (2014), fábula que reúne um casal de adolescentes, moradores de uma ilha no interior do Japão, que descobrem os mistérios do amor e do sagrado, onde o medo do mar é a metáfora dos desafios e dos segredos da vida e da morte. Também em Sabor da Vida (2015), a mensagem sobre a sabedoria dos mais idosos, através da personagem de uma velha e solitária senhora, de 75 anos, fazedora de dorayakis, bolinhos de massa de feijão, que transforma os que se aproximam e se envolvem em suas receitas secretas, no seu dom de cozinhar, de cativar, de narrar e de viver. 
Nos filmes de antes e no de agora, no seu novo Esplendor, Naomi Kawase imprime uma poderosa luz, a iluminar nossos olhos e corações, nos comovendo e ensinando sobre mistérios e milagres da existência, através de um cinema de poesia, paixão, assombro e delicadeza.


Comentários

  1. Comentário recebido do compositor Renato Rocha:
    Esplendor é esplendoroso. Um filme de referência, que mereceria uma exibição no Inst B. Constant, seguido de debate com a plateia. Aprenderíamos muito. A Naomi Kawase, que eu desconhecia, entrou para a minha galeria dos maiorais. Sua preocupação com os limites das linguagens é uma preocupação que todo criador tem, em maior e menor grau, e a delicadeza e a precisão com que trata o tema é genial. Um filme cheio de silêncios e pausas, cheio de closes e vozes off, examinando a utilidade que uma arte visual pode ter para os olhos. Um filme que enche nossos olhos. A cena em que o fotógrafo cego examina o rosto da versionista, uma atriz belíssima (mulher é foda: tem sempre uma melhor), é uma das mais sensuais dos últimos tempos. O melhor cego é o que quer ver.
    Renato Rocha

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